Na manhã seguinte, Quíron me mudou para o chalé 3. Não tive de compartilhá-lo com ninguém. Tinha espaço à vontade para todas as minhas coisas: o chifre do Minotauro, um conjunto de roupas de reserva e uma sacola de artigos de toalete. Ia me sentar à minha própria mesa de jantar, escolhia todas as minhas atividades, determinava o “apagar das luzes” sempre que tinha vontade e não ouvia mais ninguém.
E me sentia totalmente infeliz.
Bem quando começava a me sentir aceito, a sentir que tinha um lar no chalé 11 e poderia ser um garoto normal – ou tão normal quanto é possível quando se é um meio-sangue -, fui separado como se tivesse alguma doença rara.
Ninguém mencionou o cão infernal, mas tive a sensação de que estavam todos falando sobre isso pelas minhas costas. O ataque assustara todo mundo. Ele mandou duas mensagens: a primeira, que eu era filho do Deus do mar; a segunda, que os monstros não mediriam esforços para me matar. Podiam até invadir um acampamento que sempre foi considerado seguro.
Os outros campistas mantinham distância de mim na medida do possível. O chalé 11 estava agitado demais para receber aula de esgrima junto comigo depois do que eu fizera com o pessoal de Ares no bosque, e assim minhas aulas com Luke passaram a ser particulares. Ele me exigia mais do que nunca, e não tinha medo de me machucar.
– Você vai precisar de todo o treinamento que puder obter – prometeu, enquanto trabalhávamos com espadas e tochas flamejantes. – Agora vamos tentar de novo aquele golpe de decapitar víboras. Mais cinquenta repetições.
Annabeth ainda me ensinava grego pela manhã, mas aprecia distraída. A cada vez que eu dizia alguma coisa, ela fechava a cara, como se eu tivesse acabado de lhe dar um soco.
Depois das aulas, ela ia embora resmungando consigo mesma:
– Missão... Poseidon?... Grande porcaria... Preciso de um plano...
Até Clarisse mantinha distância, embora os olhares venenosos deixassem claro que queria me matar por ter quebrado sua lança mágica. Queria que ela simplesmente gritasse, me desse um soco ou coisa assim. Era melhor me meter em brigar todos os dias a ser ignorado.
Soube que alguém no acampamento andava ressentido comigo, porque uma noite entrei no meu chalé e achei um jornal horrível jogado porta adentro, um exemplar do New York Daily News, aberto na página Metrópole. Levei quase uma hora para ler a matéria, porque quanto mais ficava zangado mais as palavras pareciam flutuar na página.
MENINO E SUA MÃE AINDA DESAPARECIDOS DEPOIS DE ESTRANHO ACIDENTE DE CARRO
Por Ellen Smythe
Sally Jackson e seu filho Percy ainda não foram encontrados uma semana depois de seu misterioso desaparecimento. O carro da família, um Camaro 1978, totalmente queimado, foi descoberto no último sábado em uma estrada ao norte de Long Island com o teto arrancado e o eixo dianteiro quebrado. O carro havia capotado e derrapado por várias centenas de metros antes de explodir.
Mãe e filho tinham ido passar um fim de semana em Montauk, mas saíram às pressas, sob circunstâncias misteriosas. Pequenos sinais de sangue foram encontrados no carro e perto da cena do desastre, mas não havia outros indícios dos Jackson desaparecidos.
Residentes da área rural declararam não ter visto nada de inusitado por volta da hora do acidente. O marido da Sra. Jackson, Gabe Ugliano, alega que o enteado, Percy Jackson, é uma criança problemática que foi expulsa de inúmeros internatos e demonstrou tendências violentas no passado.
A polícia não diz se o filho Percy é suspeito do desaparecimento da mãe, porém não descarta a hipótese de crime. Abaixo estão fotografias recentes de Sally Jackson e Percy. A polícia solicita a qualquer pessoa que tenha alguma informação que ligue gratuitamente para o disque-denúncia de crimes, a seguir.
O número do telefone estava circulado com marcador preto.
Amarrotei o jornal e joguei fora, depois me joguei em meu beliche no meio do chalé vazio.
“Apagar das luzes”, disse para mim mesmo, arrasado.
Naquela noite, tive meu pior pesadelo até então.
Eu corria pela praia no meio de uma tempestade. Dessa vez, havia uma cidade atrás de mim. Não Nova York. O panorama era diferente: os edifícios eram mais afastados uns dos outros, havia palmeiras e colinas baixas a distância.
Cem metros adiante, na arrebentação, dois homens estavam brigando. Pareciam lutadores de tevê, musculosos, com barbas e cabelos compridos. Ambos usavam túnicas gregas esvoaçantes, uma guarnecida de azul, a outra, de verde. Atracavam-se, lutavam, chutavam e davam cabeçadas, e a cada vez que tocavam, caíam raios, o céu escurecia e ventos sopravam.
Eu precisava detê-los. Não sabia por quê. Mas, quanto mais eu corria, mais o vento me empurrava de volta, até eu correr sem sair do lugar, os calcanhares se enterrando inutilmente na areia.
Por cima do rugido da tempestade, pude ouvir o de túnica azul gritando para o de túnica verde: Devolva! Devolva! Era como se uma criança do jardim-de-infância estivesse brigando por causa de um brinquedo.
As ondas ficaram maiores, arrebentando na praia e me borrifando com sal.
Eu gritei: Parem com isso! Parem de brigar!
O chão estremeceu. Risadas vieram de algum lugar embaixo da terra, e uma voz profunda e maligna me gelou o sangue.
Venha para baixo, pequeno herói, a voz sussurrou. Venha para baixo!
A areia se abriu embaixo de mim numa fenda que ia direto ao centro da Terra. Meus pés escorregaram e as trevas me engoliram. Acordei, certo de que estava caindo.
Ainda estava na cama, no chalé 3. Meu corpo me dizia que já era manhã, mas estava escuro lá fora e o trovão ribombava pelas colinas. Uma tempestade estava se formando. Isso eu não havia sonhado.
Ouvi um som oco à porta, o som de um casco batendo na soleira.
– Entre.
Grover trotou para dentro, parecendo preocupado.
– O Sr. D quer vê-lo.
– Por quê?
– Ele quer matar... quer dizer, é melhor deixar que ele conte.
Eu me vesti, agitado, e fui, certo de que estava em uma grande encrenca. Havia dias eu estava esperando uma convocação para a Casa Grande. Agora que tinha sido declarado filho de Poseidon, um dos Três Grandes deuses que não deveriam ter filhos, imaginei que o simples fato de estar vivo já fosse um crime. Os outros deuses provavelmente haviam debatido sobre o melhor jeito de me punir por existir, e agora o Sr. D estava pronto para dar seu veredicto.
Acima do estreito de Long Island, o céu parecia uma sopa de tinta em ponto de fervura.
Uma cortina brumosa de chuva vinha em nossa direção. Perguntei a Grover se precisávamos de um guarda-chuva.
– Não – disse ele. – Aqui nunca chove, a não ser que queiramos.
Apontei a tempestade.
– Então o que diabo é aquilo?
Ele olhou, preocupado, para o céu.
– Vai passar em volta de nós. O mau tempo sempre faz isso.
Percebi que ele estava certo. Fazia uma semana que estava ali e nunca vira o tempo fechado. As poucas nuvens de chuva que tinha notado contornavam os limites do vale.
Mas aquela tempestade... aquela era imensa.
Na arena de vôlei as crianças do chalé de Apolo jogavam uma partida matinal contra os sátiros. Os gêmeos de Dionísio caminhavam em volta dos campos de morangos fazendo as plantas crescerem. Todos estavam cuidando de suas tarefas normais, mas pareciam tensos. Estavam de olho na tempestade.
Grover e eu caminhamos até a varanda da frente da Casa Grande. Dionísio estava sentado à mesa de pinoche com sua Diet Coke, usando a camisa havaiana com listras de tigre, exatamente como no meu primeiro dia. Quíron estava do outro lado da mesa em sua falsa cadeira de rodas. Jogavam contra oponentes invisíveis – duas mãos de cartas flutuavam no ar.
– Bem, bem – disse o Sr. D sem erguer os olhos. – Nossa pequena celebridade.
Eu aguardei.
– Chegue mais perto – disse o Sr. D. – E não espere que eu me prostre diante de você, mortal, só porque o velho Barbas de Craca é seu pai.
Uma rede de raios brilhou através das nuvens. Um trovão fez tremerem as janelas da casa.
– Blablablá – disse Dionísio.
Quíron fingiu interesse em suas cartas de pinoche. Grover se encolheu junto ao gradil, os cascos batendo para a frente e para trás.
– Se as coisas fossem do meu jeito – disse Dionísio –, eu faria suas moléculas irromperem em chamas. Nós varreríamos as cinzas e estaríamos livres de um monte de problemas. Mas Quíron parece achar que isso seria contra a minha missão neste acampamento maldito: manter vocês, moleques, a salvo do mal.
– Combustão espontânea é uma forma de mal, Sr. D – interveio Quíron.
– Bobagem – disse Dionísio. – O menino não sentiria nada. No entanto, eu concordei em me conter. Estou pensando em transformar você em um golfinho em vez disso, e mandá-lo de volta para seu pai.
– Sr. D... – advertiu Quíron.
– Ora, está bem – cedeu Dionísio. – Há mais uma opção. Mas é uma insensatez descomunal. – Dionísio levantou-se, e as cartas dos jogadores invisíveis caíram sobre a mesa. – Estou indo ao Olimpo para uma reunião de emergência. Se o menino ainda estiver aqui quando eu voltar, vou transformá-lo em um nariz-de-garrafa do Atlântico. Entendeu? E Perseu Jackson, se você for mesmo esperto, verá que se trata de uma escolha muito mais sensata do que aquela que Quíron imagina.
Dionísio pegou uma carta, torceu-a e ela se transformou em um retângulo de plástico. Cartão de crédito? Não. Um passe de segurança.
Ele estalou os dedos.
O ar pareceu se dobrar e se curvar em volta dele. Ele transformou-se em um holograma, depois em um vento e depois desapareceu, deixando para trás apenas o cheiro de uvas recém-prensadas.
Quíron sorriu para mim, mas parecia cansado e tenso.
– Sente-se, Percy, por favor. Grover também.
Nós obedecemos.
Quíron pôs suas cartas na mesa. A mão vencedora que ele não chegara a usar.
– Diga-me, Percy – disse ele. – O que você sentiu com o cão infernal?
Só de ouvir o nome, eu estremeci.
Quíron provavelmente queria que eu dissesse: Ora, aquilo não foi nada. Costumo comer cães infernais no café-da-manhã. Mas eu não estava com vontade de mentir.
– Ele me apavorou – falei. – Se vocês não o tivessem acertado, eu estaria morto.
– Você vai enfrentar coisas piores, Percy. Muito piores, antes de terminar.
– Terminar... o quê?
– Sua missão, é claro. Você vai aceitá-la?
Dei uma olhada para Grover, que estava cruzando os dedos.
– Ahn, senhor, ainda não me contou qual será.
Quíron fez uma careta.
– Bem, essa é a parte difícil, os detalhes.
Um trovão irrompeu pelo vale. As nuvens de tempestade haviam agora chegado ao limite da praia. Até onde eu podia ver, o céu e o mar estavam fervendo juntos.
– Poseidon e Zeus – disse eu. – Eles estão lutando por algo valioso... algo que foi roubado, não estão?
Quíron e Grover trocaram olhares.
– Como você sabe disso?
Senti o rosto quente. Desejei não ter aberto meu bocão.
– Desde o Natal o tempo está esquisito, como se o mar e o céu estivessem brigando. Então falei com Annabeth, e ela tinha ouvido alguma coisa sobre um roubo. E... também andei sonhando umas coisas.
– Eu sabia – disse Grover.
– Quieto, sátiro – ordenou Quíron.
– Mas essa é a missão dele! – Os olhos de Grover estavam brilhantes de excitação. – Tem de ser!
– Só o Oráculo pode determinar. – Quíron alisou a barba eriçada. – No entanto, Percy, você está correto. Seu pai e Zeus estão tendo sua pior disputa em séculos. Estão lutando por uma coisa valiosa que foi roubada. Para ser preciso: um relâmpago.
Eu ri nervoso
– Um o quê?
– Não brinque com isso – advertiu Quíron. – Não estou falando de um ziguezague coberto de papel-alumínio como você vê em peças da escola. Estou falando de um cilindro de bronze celestial de alto grau, com sessenta centímetros de comprimento, arrematado em ambos os lados com explosivos de nível deífico.
– Ah.
– O raio-mestre de Zeus – disse Quíron, agora ficando emocionado. – O símbolo de seu poder, conforme o qual todos os outros raios são moldados. A primeira arma feita pelos Ciclopes para a guerra contra os Titãs, que decepou o cume do Monte Etna e arremessou Cronos para fora do seu trono; o raio–mestre, que acumula potência suficiente para fazer as bombas de hidrogênio dos mortais parecerem fogos de artifícios.
– E ele desapareceu
– Roubaram – disse Quíron.
– Quem roubaram?
– Quem roubou – corrigiu Quíron. – Uma vez professor, sempre professor. – Você.
Meu queixo caiu.
– Pelo menos – Quíron ergueu uma das mãos –, é isso que Zeus pensa. Durante o solstício de inverno, na última assembleia dos deuses, Zeus e Poseidon tiveram uma discussão. As tolices de sempre: “A Mãe Rhea sempre gostou mais de você”, “Os desastres aéreos são mais espetaculares que os marítimos” etc. Mais tarde, Zeus se deu conta de que o seu raio-mestre havia desaparecido, levado da sala do trono bem debaixo do seu nariz. No mesmo instante culpou Poseidon. Agora, um deus não pode usurpar diretamente o símbolo de poder de outro deus – isso é proibido pela mais antiga das leis divinas. Mas Zeus acredita que seu pai convenceu um herói humano a pegá-lo.
– Mas eu não...
– Paciência, e escute, criança – disse Quíron. – Zeus tem boas razões para suspeitar. As forjas dos Ciclopes ficam embaixo do oceano, o que dá a Poseidon alguma influencia sobre os fabricantes dos raios do seu irmão. Zeus acredita que Poseidon pegou o raio-mestre e está agora mandando os Ciclopes construírem secretamente um arsenal de cópias ilegais, que poderiam ser usadas para derrubar Zeus do seu trono. A única coisa de que Zeus não tinha certeza era qual herói Poseidon usara para roubar o raio. Agora Poseidon declarou abertamente que você é filho dele. Você estava em Nova York nas férias de inverno. Poderia facilmente ter se infiltrado no Olimpo. Zeus acredita que encontrou o seu ladrão.
– Mas eu nunca estive no Olimpo! Zeus está maluco!
Quíron e Grover olharam nervosamente para o céu. As nuvens não pareciam estar se separando à nossa volta, como Grover prometera. Estavam vindo para cima do nosso vale, fechando-nos dentro dele como uma tampa de caixão.
– Ahn, Percy...? – disse Grover. – Nós não usamos essa palavra que começa com m para descrever o Senhor do Céu.
– Paranóico, quem sabe – sugeriu Quíron. – Mas, por outro lado, Poseidon já tentou derrubar Zeus antes. Acredito que essa foi a pergunta 38 da sua prova final... – Ele olhou para mim como quem realmente esperava que e me lembrasse da pergunta 38.
Como podia alguém me acusar de roubar a arma de um deus? Eu não conseguia nem furtar um pedaço de pizza da mesa de pôquer de Gabe sem ser pego. Quíron estava esperando por uma resposta.
– Alguma coisa a ver com uma rede de ouro? – adivinhei. – Poseidon, e Hera, e alguns outros deuses... eles, tipo, prenderam Zeus numa armadilha e não o deixaram sair até ele prometer ser um soberano melhor, certo?
– Correto – disse Quíron. – E Zeus nunca mais confiou em Poseidon desde então. Poseidon, é claro, nega ter roubado o raio-mestre. Ele se ofendeu com a acusação. Os dois vêm discutindo o tempo todo há meses, com ameaças de guerra. E agora você apareceu – a famosa gota d’água.
– Mas eu sou apenas uma criança!
– Percy – interveio Grover –, se você fosse Zeus, e já achasse que o seu irmão estava planejando derrubá-lo, e então subitamente admitisse que havia quebrado o juramento sagrado que fizera depois da Segunda Guerra Mundial e que era pai de um novo herói mortal que poderia ser usado como uma arma contra você... Isso não o deixaria com a pulga atrás da orelha?
– Mas eu não fiz nada. Poseidon – meu pai – ele realmente não mandou roubar o raio-mestre, mandou?
Quíron suspirou.
– A maioria dos observadores inteligentes concordaria que o roubo não faz o estilo de Poseidon. Mas o Deus da Maré é orgulhoso demais para tentar convencer Zeus disso. Zeus exigiu que Poseidon devolva o raio até o solstício de verão. Isso será em 21 de junho, dez dias a contar de agora. Poseidon quer um pedido de desculpas por ser chamado de ladrão até essa mesma data. Eu tinha esperanças de que a diplomacia prevalecesse, que Hera ou Deméter ou Héstia fizessem os dois irmãos verem a razão. Mas a sua chegada inflamou o gênio de Zeus. Agora nenhum dos dois deuses quer recuar. A não ser que alguém intervenha, a não ser que o raio-mestre seja encontrado e devolvido a Zeus antes do solstício, haverá guerra. E você sabe como poderia ser uma guerra total, Percy?
– Ruim ? – adivinhei.
– Imagine o mundo em caos. A natureza em guerra consigo mesma. Os olimpianos forçados a escolher lados entre Zeus e Poseidon. Destruição. Carnificina. Milhões de mortos. A civilização ocidental transformada em um campo de batalha tão grande que fará a Guerra de Tróia parecer uma luta de balões d’água.
– Ruim – repeti.
– E você, Percy Jackson, será o primeiro a sentir a ira de Zeus.
Começou a chover. Os jogadores de vôlei interromperam o jogo e olhavam perplexos para o céu.
Eu havia trazido a tempestade para a Colina Meio-Sangue, Zeus estava punindo o acampamento inteiro por minha causa. Eu estava furioso.
– Então eu tenho de encontrar aquele raio estúpido – disse. – E devolvê-lo a Zeus.
– Que melhor oferenda de paz – disse Quíron –, do que fazer filho de Poseidon devolver o que é de Zeus?
– Se não está com Poseidon, onde está essa coisa?
– Eu creio que sei. – A expressão de Quíron era soturna. – Parte da profecia que recebi anos atrás... bem, algumas frases fazem sentido para mim, agora. Mas, antes que eu possa dizer mais, você precisa aceitar oficialmente a missão. Você precisa procurar o conselho do Oráculo.
– Por que você não pode dizer de antemão onde está o raio?
– Porque, se eu fizer isso, você ficará assustado demais para aceitar o desafio.
Eu engoli em seco.
– Boa razão.
– Então você concorda?
Olhei para Grover, que assentiu encorajadoramente.
Fácil para ele. Era a mim que Zeus queria matar.
– Está bem – disse eu. – É melhor do que ser transformado em um golfinho.
– Então é hora de você consultar o Oráculo – disse Quíron. – Vá para cima, Percy Jackson, para o sótão. Quando descer de novo, presumindo que ainda esteja lúcido, conversaremos mais.
Quatro lances acima, a escada terminava embaixo de um alçapão verde. Puxei o cordão. A porta se abriu e uma escada de madeira caiu ruidosamente no lugar. O ar morno que vinha de cima cheirava a mofo, madeira podre e mais alguma coisa... um cheiro que me lembrou a aula de biologia. Répteis. O cheiro de serpentes.
Prendi a respiração e subi.
O sótão estava atulhado de sucata de heróis gregos: suportes de armaduras cobertos de teias de aranha; escudos outrora brilhantes cheios de adesivos dizendo ÍTACA, ILHA DE CIRCE E TERRA DAS AMAZONAS. Sobre uma mesa comprida estavam amontoados potes de vidro cheios de coisas em conserva – garras peludas decepadas, enormes olhos amarelos e diversas outras partes de monstros. Um troféu empoeirado na parede parecia ser uma cabeça de serpente gigante, mas com chifres e uma arcada completa de dentes de tubarão. Uma placa dizia: CABEÇA N. 1 DA HIDRA, WOODSTOCK, N.Y., 1969.
Junto à janela, sentado em uma banqueta de madeira com três pernas, estava o suvenir mais pavoroso de todos: uma múmia. Não do tipo enfaixada em panos, mas um corpo humano feminino, ressecado até ficar só a casca. Usava um vestido de verão estampado em batique, com uma porção de colares de contas e uma bandana por cima de longos cabelos pretos. A pele do rosto era fina e parecia couro por cima do crânio, e os olhos eram fendas brancas vítreas, como se os olhos de verdade tivessem sido substituídos por bolas de gude; devia estar morta fazia muito, muito tempo.
Olhar para ela me deu arrepios nas costas. E isso foi antes de ela se endireitar na banqueta e abrir a boca. Uma névoa verde jorrou da garganta da múmia, serpenteando pelo chão em anéis grossos, sibilando como vinte mil cobras. Tropecei em mim mesmo tentando chegar até o alçapão, mas ele se fechou com uma batida. Dentro da minha cabeça, ouvi uma voz, deslizando por um ouvido e se enroscando por meu cérebro:
Eu sou o espírito de Delfos, porta-voz das profecias de Febo Apolo, assassino da poderosa Píton. Aproxime-se, você que busca, e pergunte.
Eu quis dizer: Não, obrigado, porta errada, só estava procurando o banheiro. Mas me forcei a respirar fundo.
A múmia não estava viva. Era algum tipo de receptáculo horripilante para uma outra coisa, o poder que girava em espiral à minha volta na névoa verde. Mas sua presença não parecia maligna, como a da professora demoníaca de matemática, a Sra. Dodds ou a do Minotauro. Era mais como as Três Parcas que eu tinha visto tricotando o fio de lã ao lado da banca de frutas da rodovia: antiga, poderosa e, sem duvida, não-humana. E também não parecia especialmente interessada em me matar.
Reuni coragem para perguntar:
– Qual é o meu destino?
A névoa rodopiou, mais densa, juntando-se bem na minha frente e em volta da mesa com os potes que continham partes de monstros em conserva. De repente, havia quatro homens sentados à volta da mesa, jogando cartas. Os rostos ficaram mais nítidos. Era Gabe Cheiroso e seus cupinchas.
Meus punhos se contraíram, embora eu soubesse que aquele jogo de pôquer não podia ser real. Era uma ilusão, feita d névoa.
Gabe voltou-se para mim e falou na voz rouca do Oráculo:
Você irá para o oeste, e irá enfrentar o deus que se tornou desleal.
O cupincha da direita ergueu os olhos e disse com a mesma voz:
Você irá encontrar o que foi roubado, e o verá devolvido em segurança.
O da esquerda colocou três fichas na mesa, depois disse:
Você será traído por aquele que o chama de amigo.
Por fim Eddie, o zelador do nosso edifício, preferiu a pior sentença de todas:
E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa.
As figuras começaram a se dissolver. De início fiquei atordoado demais para dizer alguma coisa, mas quando a névoa recuou, enrolando-se como uma enorme serpente verde e deslizando de volta para dentro da boca da múmia, eu gritei:
– Espere! O que quer dizer? Que amigo? O que não vou conseguir salvar?
A cauda da serpente de névoa desapareceu na boca da múmia. Ela se reclinou de volta contra a parede. A boca fechou-se bem apertada, como se não tivesse sido aberta em cem anos. O sótão ficou silencioso de novo, abandonado, nada além de uma sala cheia de suvenires.
Tive a sensação de que poderia ficar lá parado até juntar teias de aranha também, e não ficaria sabendo mais nada.
Minha audiência com o Oráculo estava encerrada.
– E então? – Quíron me perguntou.
Desabei em uma cadeira à mesa de pinoche.
– Ela disse que eu devia recuperar o que foi roubado.
Grover se inclinou para frente, mascando animado os restos de uma lata de Diet Coke.
– Isso é ótimo!
– O que foi que o Oráculo disse exatamente? – pressionou Quíron. – Isso é importante.
Meus ouvidos ainda estavam tinindo com a voz reptiliana.
– Ela... ela disse que eu iria para o oeste e enfrentaria um deus que se tornou desleal. Recuperaria o que foi roubado e devolveria em segurança.
– Eu sabia – disse Grover.
Quíron não pareceu satisfeito.
– Mais alguma coisa?
Eu não queria contar a ele.
Que amigo iria me trair? Eu não tinha tantos assim.
E a última sentença – eu fracassaria em salvar o que mais importa. Que tipo de Oráculo me mandaria em uma missão e me diria, Ah, a propósito, você vai se dar mal.
Como eu poderia confessar aquilo?
– Não – falei. – Isso é tudo.
Ele estudou meu rosto.
– Muito bem, Percy. Mas saiba disto: as palavras do Oráculo frequentemente têm duplo sentido. Não se fie demais nelas. A verdade nem sempre fica clara até que os eventos aconteçam.
Tive a sensação de que ele sabia que eu estava escondendo algo ruim, e tentava fazer com que eu me sentisse melhor.
– Certo – falei, ansioso por mudar de assunto. – Então, aonde vou? Quem é esse deus no oeste?
– Ah, pense, Percy – disse Quíron. – Se Zeus e Poseidon enfraquecem um ao outro numa guerra, quem tem a ganhar com isso?
– Algum outro que queira tomar o poder? – adivinhei.
– Sim, exatamente. Alguém que guarda um ressentimento, alguém que está infeliz com a parte que lhe coube desde que o mundo foi dividido eras atrás, cujo reinado se tornará poderoso com a morte de milhões. Alguém que odeia os irmãos por forçá-lo a um juramento de não ter mais filhos, um juramento que ambos quebraram.
Pensei nos meus sonhos, na voz maligna que falara do fundo da terra.
– Hades.
Quíron assentiu.
– O Senhor dos Mortos é a única possibilidade.
Grover babou um pedaço de alumínio pelo canto da boca.
– Opa, espere aí. O-o quê?
– Uma das Fúrias veio trás de Percy – lembrou Quíron. – Ela observou o rapaz até ter certeza da sua identidade, e então tentou matá-lo. As Fúrias obedecem a um só senhor: Hades.
– Sim, mas... mas Hades odeia todos os heróis – protestou Grover. – Especialmente se tiver descoberto que Percy é filho de Poseidon...
– Um cão infernal conseguiu entrar na floresta – continuou Quíron. – Eles só podem ser convocados dos Campos da Punição, e ele tinha de ser convocado por alguém de dentro do acampamento. Hades deve ter um espião aqui. Ele deve suspeitar que Poseidon tentará usar Percy para limpar seu nome. Hades gostaria muito de matar esse jovem meio-sangue antes que ele possa assumir a missão.
– Boa – murmurei. – São dois dos deuses mais importantes querendo me matar.
– Mas uma missão para... – Grover engoliu em seco. – Quer dizer, o raio-mestre não poderia estar em algum lugar como o Maine? O Maine é muito agradável nesta época do ano.
– Hades enviou o protegido para roubar o raio-mestre – insistiu Quíron. – Ele o escondeu no Mundo Inferior, sabendo muito bem que Zeus culparia Poseidon. Não pretendo entender perfeitamente os motivos do Senhor dos Mortos ou por que ele escolheu esta época para começar uma guerra, mas uma coisa é certa: Percy precisa ir ao Mundo Inferior; encontrar o raio-mestre e revelar a verdade.
Um fogo estranho queimou em meu estômago. O mais esquisito era que não se tratava de medo. Era expectativa. O desejo de vingança. Hades tentara me matar três vezes até agora, com a Fúria, o Minotauro e o cão infernal. Por sua culpa minha mãe desaparecera em um clarão. Agora ele tentava enquadrar eu e meu pai por um roubo que não tínhamos cometido.
Eu estava pronto para enfrentá-lo.
Além disso, se minha mãe estava no Mundo Inferior...
Epa, rapaz!, disse a pequena parte do meu cérebro que ainda estava lúcida. Você é um garoto. Hades é um deus.
Grover estava tremendo. Tinha começado a comer cartas de pinoche como se fossem batatinhas fritas.
O pobre sujeito precisava completar uma missão comigo para obter sua licença de buscador, o que quer que fosse isso, mas como poderia lhe pedir que participasse daquilo, principalmente sabendo que o Oráculo dissera que eu ia fracassar? Era suicídio.
– Olhe, se nós abemos que é Hades – disse a Quíron –, Zeus ou Poseidon poderiam descer ao Mundo Inferior e fazer rolar algumas cabeças.
– Suspeitar e saber não são o mesmo – disse Quíron. – Além disso, mesmo que suspeitem de Hades... imagino que Poseidon suspeite.. os outros deuses não poderiam recuperar o raio por si mesmos. Deuses não podem entrar nos territórios um do outro a não ser que sejam convidados. Essa é outra regra muito antiga. Heróis, por outro lado, têm certos privilégios. Podem ir a qualquer lugar, desafiar qualquer um, desde que sejam corajosos e fortes o bastante para fazê-lo. Nenhum deus pode ser responsabilidade pelos atos de um herói. Por que acha eu os deuses sempre agem por intermédio de seres humanos?
– Você está dizendo que estou sendo usado.
– Estou dizendo que não é por acaso que Poseidon o assumiu agora. É uma jogada muito arriscada, mas ele está em uma situação desesperadora. Precisa de você.
Meu pai precisa de mim.
As emoções giraram dentro de mim como pedaços de vidro em um caleidoscópio. Eu não sabia se sentia ressentimento, gratidão, alegria ou raiva. Poseidon me ignorara por doze anos. Agora de repente, precisava de mim.
Olhei para Quíron.
– Você sabia o tempo todo que eu era filho de Poseidon, não é?
– Tinha minhas suspeitas. Como eu disse... também falei com o Oráculo.
Tive a sensação de que havia muita coisa que ele não estava me contando sobre sua profecia, mas percebi que não poderia me preocupar com aquilo naquela hora. Afinal, eu também estava sonegando informações.
– Então, deixe-me entender direito – falei. – Preciso ir para o Mundo Inferior e confrontar o Senhor dos Mortos.
– Confere – disse Quíron.
– Para encontrar a arma mais poderosa do universo.
– Confere.
– E levá-la de volta ao Olimpo antes do solstício de verão, daqui a dez dias.
– Isso mesmo.
Olhei para Grover, que engoliu o ás de copas.
– Cheguei a mencionar que o Maine é muito agradável nesta época do ano? – perguntou ele de um jeito cansado.
– Você não precisa ir – disse a ele. – Não posso lhe exigir isso.
– Ah... – Ele se balançou de um casco para o outro. – Não... é só que os sátiros, e os lugares embaixo da terra... bem...
Ele respirou fundo, depois se pôs de pé, sacudindo os pedaços de cartas e alumínio da camiseta.
– Você salvou a minha vida, Percy. Se... se está falando sério em querer que eu vá junto, não vou deixá-lo na mão.
Fiquei tão aliviado que tive vontade de chorar, embora não achasse isso muito heroico.
Grover era o único amigo que já tivera por mais que alguns meses. Não sabia muito bem o que um sátiro poderia fazer contra as forças dos mortos, mas me senti melhor sabendo que ele estaria comigo.
– Juntos até o fim, homem-bode. – Eu me virei para Quíron. – Então, para onde vamos? O Oráculo só disse para ir para oeste.
– A entrada para o Mundo Inferior fica sempre no oeste. Muda de lugar de era em era, como o Olimpo. Atualmente, é claro, fica nos Estados Unidos.
– Onde?
Quíron pareceu surpreso.
– Pensei que fosse óbvio. A entrada para o Mundo Inferior fica em Los Angeles.
– Ah – falei. – Claro. Então é só pegar um avião...
– Não! – gritou Grover. – Percy, o que está pensando? Alguma vez na vida já esteve em um avião?
Sacudi a cabeça, sem graça. Minha mãe nunca me levara para lugar algum de avião. Ela sempre dizia que não tínhamos dinheiro pra isso. Além disso, os pais dela tinham morrido em um desastre de avião.
– Percy, pense – disse Quíron. – Você é filho do Deus do Mar. O rival mais rancoroso do seu pai é Zeus, Senhor do Céu. Sua mãe sabia muito bem que não podia confiar você a um avião.
Acima de nós, relâmpagos estalaram. O trovão ribombo.
– Certo – disse eu, determinado a não olhar para a tempestade. – Então, viajarei por terra.
– Certo – disse Quíron. – Dois parceiros poderão acompanhá-lo. Grover é um. O outro já se apresentou como voluntário, se você aceitar a ajuda dela.
– Puxa – falei, fingindo surpresa. – Quem mais seria bastante estúpido para se apresentar para uma missão como essa?
O ar tremulou atrás de Quíron.
Annabeth se tornou visível, enfiando o boné dos Yankees no bolso de trás.
– Eu estava esperando há muito tempo por uma missão, cabeça de alga – disse ela. – Atena não é fã de Poseidon, mas se você vai salvar o mundo, sou a melhor pessoa para impedir que estrague tudo.
– Se é você quem diz. Tem algum plano, sabidinha?
As bochechas dela coraram.
– Você quer a minha ajuda ou não?
A verdade é que eu queria. Precisava de toda a ajuda que pudesse encontrar.
– Um trio – disse eu. – Isso vai dar certo.
– Excelente – disse Quíron. – Esta tarde podemos levar vocês no máximo até o terminal de ônibus em Manhattan. Depois disso, estarão por conta própria.
Um relâmpago. A chuva desabou sobre as campinas que jamais deveriam ver um temporal violento.
– Não há tempo a perder – disse Quíron. – Acho que todos vocês devem fazer as malas.
Capítulo 10 - Eu destruo um ônibus
Não precisei de muito tempo para fazer as malas. Decidi deixar o cifre do Minotauro no meu chalé, então só restaram uma muda extra de roupas e uma escova de dentes para enfiar numa mochila que Grover encontrara para mim.
A loja do acampamento me emprestou cem dólares em dinheiro mortal e vinte dracmas de ouro. Essas moedas eram grandes como um biscoito gigante, tinham imagens de diversos deuses gregos estampadas de um lado e o Edifício Empire States do outro. Os dracmas dos mortais antigos eram de prata, Quíron nos contou, mas os olimpianos nunca usavam nada menos que ouro puro. Quíron disse que as moedas poderiam vir a calhar para transações não-mortais – o que quer que isso significasse. Ele deu a Annabeth e a mim um cantil de néctar e um saco hermético cheio de quadradinhos de ambrosia, para usar somente em emergências, se fôssemos gravemente feridos. Aquilo
era o alimento dos deuses, Quíron lembrou. Iria nos curar de qualquer ferimento, mas era letal para mortais. Em excesso, poderia deixar um meio-sangue com muita, muita febre. Uma overdose nos faria pegar fogo, literalmente.
Annabeth carregava seu boné mágico dos Yankees, que era, ela me contou, um presente da mãe pelo seu décimo segundo aniversario. Ela levou um livro sobre a famosa arquitetura clássica, escrito em grego antigo, para ler quando estivesse entediada, e carregava uma comprida faca de bronze escondida na manga da camisa. Eu tinha certeza de que a faca ia nos causar problemas na primeira vez em que passássemos por um detector de metais.
Grover estava com seus pés falsos e calças para passar por ser humano. Usava uma touca verde estilo rastafári, porque, quando chovia, seu cabelo encaracolado se achatava, deixando aparecer a ponta dos chifres. Sua mochila berrante, alaranjada, estava cheia de sucata de metal e maçãs para o lanche. Em seu bolso havia um conjunto de flautas de bambu que o papai-bode esculpira para ele, muito embora ele só conhecesse duas músicas: o Concerto para Piano n° 12, de Mozart, e So Yesterday, de Hilary Duff, e ambas soassem muito mal em flautas de bambu.
Acenamos em despedida para os outros campistas, demos uma última olhada para os campos de morangos, o oceano e a Casa Grande, depois subimos a Colina Meio-Sangue até o alto pinheiro que outrora fora Thalia, filha de Zeus.
Quíron nos esperava em sua cadeira de rodas. Ao lado dele estava o surfista que eu tinha visto quando me recuperava no quarto doente. De acordo com Grover, o cara era chefe de segurança do acampamento. Supostamente, tinha olhos espalhados pelo corpo inteiro para jamais ser pego de surpresa. Naquele dia, no entanto, usava uniforme de chofer, então só pude ver os olhos extras das mãos, do rosto e do pescoço.
– Este é Argos – disse Quíron. – Vai levar vocês de carro até a cidade e, ahn, bem, ficar de olho em tudo.
Ouvi passos atrás de nós.
Luke veio correndo colina acima, carregando um par de tênis de basquete.
– Ei! – ofegou ele. – Ainda bem que alcancei vocês.
Annabeth corou, como sempre acontecia quando Luke estava por perto.
– Só queria desejar boa sorte – disse ele para mim. – E pensei... ahn, quem sabe você poderia usar isso.
Ele me entregou os tênis, que pareciam bastante normais. Tinham até cheiro de normais.
Luke disse:
– Maia!
Asas brancas de ave brotaram dos calcanhares, deixando-me tão surpreso que os deixei cair. Os tênis bateram as asas no chão até que estas se dobraram e desapareceram.
– Impressionante! – disse Grover.
Luke sorriu.
– Ajudaram muito quando eu estava na minha missão. Presente do papai. É claro, eu não os uso muito hoje em dia... – Sua expressão tornou-se triste.
Eu não sabia o que dizer. Já era bem legal o fato de Luke ter ido se despedir. Tinha receio de que ele estivesse magoado comigo por ter ganho tanta atenção nos últimos dias. Mas ali estava ele, com um presente mágico... Aquilo me fez corar quase tanto quanto Annabeth.
– Ei, cara, obrigado.
– Escute, Percy... – Luke pareceu sem graça. – Todos esperam muito de você. Então, apenas... mate alguns monstros por mim, ok?
Trocamos um aperto de mãos. Luke afagou a cabeça de Grover entre os chifres e depois deu um grande abraço em Annabeth, que pareceu que ia desmaiar.
Depois que Luke se foi, eu disse a ela:
– Você está com a respiração acelerada.
– Não estou, não.
– Você o deixou capturar a bandeira em seu lugar, não foi?
– Ai... por que mesmo eu quero ir a algum lugar com você, Percy?
Ela desceu batendo os pés para outro lado da colina, onde um utilitário esportivo branco esperava no acostamento da estrada. Argos a seguiu, balançando as chaves do carro.
Peguei os tênis voadores e tive uma súbita sensação ruim. Olhei para Quíron.
– Eu não vou poder usar isso, não é?
Ele sacudiu a cabeça.
– A intenção de Luke foi boa, Percy. Mas subir para o ar... não seria muito inteligente de sua parte.
Eu assenti, desapontado, mas então tive uma ideia.
– Ei, Grover. Você quer um apetrecho mágico?
Seus olhos se iluminaram.
– Eu?
Rapidamente, amarramos os tênis por cima dos seus falsos pés, e o primeiro menino-bode voador do mundo estava pronto para o lançamento.
– Maia! – bradou.
Ele se ergueu do chão muito bem, mas então tombou de lado e sua mochila arrastou-se pela grama. Os tênis alados ficaram corcoveando para o alto e para baixo como minúsculos cavalos selvagens.
– Prática – gritou Quíron para ele. – Você só precisa de prática.
– Aaaaaa! – Grover saiu voando de lado colina baixo, como um cortador de grama ensandecido, em direção à van.
Antes que eu pudesse segui-lo, Quíron segurou meu braço.
– Eu devia tê-lo treinado melhor, Percy – disse ele. – Se ao menos tivesse tido mais tempo. Hércules, Jasão... todos receberam mais treinamento.
– Tudo bem. Só queria...
Eu me interrompi pois estava prestes a soar como uma criança mimada. Queria que meu pai tivesse me dado uma coisa mágica legal para ajudar na minha missão, algo tão bom quanto os tênis voadores de Luke ou o boné invisível de Annabeth.
– Onde estou com a cabeça? – exclamou Quíron. – Não posso deixar você ir sem isso.
Ele puxou uma caneta do bolso do casaco e me entregou. Era uma esferográfica descartável comum, tinta preta, tampa removível. Custava provavelmente trinta centavos.
– Puxa – disse eu. – Obrigado.
– Percy, isto foi um presente de seu pai. Guardei durante anos, sem saber que era você que eu estava esperando. Mas a profecia agora está clara para mim. Você é o escolhido.
Lembrei-me da excursão ao Metropolitan Museum of Art, quando reduzi a pó a Sra. Dodds. Quíron me jogara uma caneta que se transformou em espada. Será que aquilo era...?
Tirei a tampa, e a caneta ficou mais comprida e pesada em minha mão. Em meio segundo eu estava segurando uma reluzente espada de bronze com lâmina de fio duplo, cabo envolvido em couro e uma guarda chata rebitada com pinos de ouro. Era a primeira arma que realmente parecia equilibrada em minha mão.
– A espada tem uma história longa e trágica, sobre a qual não precisamos falar – contou-me Quíron. – Seu nome é Anaklusmos.
– Contracorrente – traduzi, surpreso que o grego antigo me tenha vindo tão fácil.
– Mas só a use para emergências – disse Quíron – e apenas contra monstros. Nenhum herói deve ferir mortais, só se for absolutamente necessário, é claro, mas esta espada não os feriria em nenhum caso.
Olhei para a lâmina cruelmente afiada.
– Como assim, não feriria mortais? Como ela pode não ferir?
– A espada é de bronze celestial. Forjada pelos Ciclopes, temperada no coração do monte Etna, resfriada no rio Lete. É mortífera para monstros, para qualquer criatura do Mundo Inferior, desde que não matem você primeiro. Mas a lâmina passará através de mortais como uma ilusão. Eles não são bastante importantes para serem mortos pela lâmina. E devo avisá-lo: como um semideus, você pode ser morto tanto por armas celestiais quanto por armas normais. Você é duas vezes mais vulnerável.
– Bom saber.
– Agora recoloque a tampa na caneta.
Encostei a tampa da caneta na ponta da espada e instantaneamente Contracorrente encolheu e se transformou de novo em uma esferográfica. Enfiei-a no bolso um pouco nervoso, porque na escola tinha a fama de perder canetas.
– Não há riscos – disse Quíron.
– De quê?
– De perder a caneta – disse ele. – É encantada. Sempre vai reaparecer no seu bolso. Experimente.
Eu estava desconfiado, mas atirei a caneta o mais longe que pude colina abaixo e a vi desaparecer na grama.
– Pode levar alguns instantes – disse Quíron. – Agora verifique o bolso.
Sem dúvida, a caneta estava lá.
– Certo, isso é muito legal – admiti. – Mas e se um mortal me vir puxando uma espada?
Quíron sorriu.
– A Névoa é algo poderoso, Percy.
– A Névoa?
– Sim. Leia a Ilíada. Está cheia de referências a isso. Sempre que elementos divinos ou monstruosos se misturam com o mundo mortal, eles geram a Névoa, que tolda a visão dos seres humanos. Você verá as coisas exatamente como são, sendo um meio-sangue, mas os seres humanos interpretarão tudo de modo muito diferente. É realmente incrível até que ponto os seres humanos podem ir para adaptar as situações à sua concepção de
realidade.
Pus Contracorrente de volta no bolso. Pela primeira vez, senti a missão como algo real. Eu estava de fato deixando a Colina Meio-Sangue. Estava indo para o oeste sem nenhuma supervisão de adulto, sem um plano B, nem mesmo um telefone celular. (Quíron disse que os telefones podiam ser rastreados por monstros; se usasse um, seria pior do que lançar um foguete de sinalização.) Eu não tinha nenhuma arma mais poderosa do que uma espada para combater monstros e chegar à Terra dos Mortos.
– Quíron... – falei. – Quando você diz que os deuses são imortais... quer dizer, havia um tempo antes deles, certo?
– Uma era antes deles, na verdade. O Tempo dos Titãs foi a Quarta Era, às vezes chamada de Era de Ouro, o que sem dúvida é um nome impróprio. Esta época, a época da civilização ocidental e reinado de Zeus, é a Quinta Era.
– Então como era... antes dos deuses?
Quíron contraiu os lábios.
– Nem mesmo eu sou bastante velho para me lembrar disso, criança, mas sei que era um tempo de trevas e selvageria para os mortais. Cronos, o Senhor dos Titãs, chamou seu reinado de Era de Ouro porque os homens viviam em inocência e livres de todo o conhecimento. Mas isso era mera propaganda. O rei Titã não se importava nada com sua espécie a não ser para servir de aperitivo, ou como fonte de entretenimento. Foi só no início do reinado do Senhor Zeus, quando Prometeu, o bom Titã, trouxe o fogo para a humanidade, que sua espécie começou a evoluir, e mesmo então Prometeu foi estigmatizado como pensador radical. Zeus o castigou severamente, como você deve se lembrar. É claro, por fim os deuses se interessaram pelos seres humanos, e nasceu a civilização ocidental.
– Mas agora os deuses não podem morrer, certo? Quero dizer, enquanto a civilização ocidental estiver viva, eles estarão vivos. Assim... mesmo se eu fracassar, nada pode acontecer de tão ruim a ponto de estragar tudo, certo?
Quíron me deu um sorriso melancólico.
– Ninguém sabe quanto tempo a Era do Ocidente irá durar, Percy. Os deuses são imortais, sim. Mas os Titãs também eram imortais. Eles ainda existem, trancados em suas várias prisões, forçados a suportar dores e castigos infinitos, com o poder reduzido, mas ainda muito vivos. Que as Parcas não permitam que os deuses sofram tal maldição, ou que retornemos às trevas e aos caos do passado. Tudo o que podemos fazer, criança, é seguir nosso destino.
– Nosso destino... presumindo que saibamos qual é.
– Relaxe – disse-me Quíron. – Mantenha as ideias no lugar. E lembre-se, você pode estar a ponto de evitar a maior guerra da história humana.
– Relaxe – disse eu. – Estou muito relaxado.
Quando cheguei ao pé da colina, olhei para trás. Sob o pinheiro que outrora era Thalia, filha de Zeus, Quíron estava em plena forma de homem-cavalo, segurando no alto seu arco em saudação. Uma típica despedida do acampamento de verão pelo seu típico centauro.
Argos nos levou para fora da zona rural em direção ao oeste de Long Island. Era esquisito estar novamente em uma autoestrada, com Annabeth e Grover sentados ao meu lado como se fôssemos caronas normais. Depois de duas semanas na Colina Meio-Sangue, o mundo real parecia uma fantasia. Surpreendi-me olhando para cada McDonald’s, cada criança no banco traseiro do carro dos pais, cada cartaz e cada Shopping Center.
– Até agora, tudo bem – disse a Annabeth. – Quinze quilômetros e nem um único monstro.
Ela me lançou um olhar irritado.
– Falar desse jeito traz má sorte, cabeça de alga.
– Ajude-me a lembrar: por que você me odeia tanto?
– Eu não odeio você.
– Posso estar enganado.
Ela dobrou o boné de invisibilidade.
– Olhe... é só que não deveríamos nos dar bem, ok? Nossos pais são rivais.
– Por quê?
Ela suspirou.
– Quantas razões você quer? Uma vez minha mãe pegou Poseidon com a namorada dele no templo de Atena, o que é superdesrespeitoso. Outra vez, Atena e Poseidon competiram para ser o deus patrono da cidade de Atenas. Seu pai criou uma estúpida fonte de água salgada como presente. Minha mãe criou a oliveira. As pessoas viram que o presente dela era melhor, portanto deram à cidade o nome dela.
– Elas realmente devem gostar de azeitonas.
– Ah, deixa pra lá.
– Agora, se ela tivesse inventado a pizza... isso eu poderia entender.
– Eu disse: deixa pra lá.
No assento dianteiro, Argos sorriu. Ele não disse nada, mas olho azul na sua nuca piscou para mim.
O trânsito ficou lento no Queens. Quando chegamos a Manhattan já era pôr do sol e começava a chover. Argos nos largou na Estação Greyhound no Upper East Side, não longe do apartamento de minha mãe e Gabe. Em uma caixa de correio, preso com fita adesiva, havia um folheto encharcado com meu retrato: VOCÊ VIU ESTE MENINO?
Eu o arranquei antes que Annabeth e Grover pudessem vê-lo.
Argos descarregou nossas malas, certificou-se de que havíamos conseguido as passagens de ônibus e então foi embora, o olho nas costas de sua mão se abrindo para nos observar enquanto tirava o carro do estacionamento.
Pensei em como estava perto do meu velho apartamento. Em um dia normal, minha mãe estaria chegando em casa da doceria mais ou menos naquela hora. Gabe Cheiroso provavelmente estava lá, jogando pôquer, sem nem sentir a falta dela.
Grover pôs sua mochila nos ombros. Olhou rua abaixo, na direção em que eu estava olhando.
– Quer saber por que ela se casou com ele, Percy?
Olhei para ele.
– Você está lendo a minha mente ou coisa assim?
– Só as suas emoções. – Ele encolheu os ombros. – Acho que me esqueci de contar que os sátiros podem fazer isso. Você estava pensando na sua mãe e no seu padrasto, certo?
Eu assenti, me perguntando o que mais Grover teria esquecido de contar.
– Sua mãe se casou com gabe por você – Grover me contou. – Você o chama de “Cheiroso”, mas não tem ideia. O cara tem essa aura... Eca, eu posso sentir o cheiro dele daqui. Posso sentir vestígios do cheiro dele em você, e já faz uma semana que você esteve perto dele.
– Obrigado – falei. – Onde fica o chuveiro mais próximo?
– Você devia ser grato, Percy. Seu padrasto tem um cheiro tão repulsivamente humano que pode mascarar a presença de qualquer semideus. Assim que inalei o ar dentro do seu Camaro, eu soube: Gabe esteve encobrindo seu cheiro por anos. Se você não tivesse morado com ele durante todos os verões, provavelmente teria sido encontrado por monstros muito tempo atrás. Sua mãe ficou com ele para proteger você. Era uma senhora esperta. Devia amar muito você para aturar aquele cara... se é que isso o faz se sentir melhor.
Não fazia, mas me forcei para não demonstrar. Eu a varei de novo, pensei. Ela não se foi.
Fiquei imaginando se Grover ainda podia ler as minhas emoções, confusas como estavam. Estava grato por ele e Annabeth estarem comigo, mas me sentia culpado porque não fora sincero com eles. Não lhes contara a verdadeira razão de ter dito sim para aquela missão maluca.
A verdade era que eu não me importava em recuperar o relâmpago de Zeus, em salvar o mundo ou mesmo em ajudar meu pai a sair da encrenca. Quanto mais pensava nisso, mas me ressentia de Poseidon por nunca ter me visitado, nunca ter ajudado a minha mãe, nunca se quer mandado uma droga de cheque de pensão alimentícia. Ele só me reconhecera porque tinha um serviço a ser feito.
Eu só me preocupava com minha mãe. Hades a levara injustamente, e Hades iria devolvê-la.
Você será traído por aquele que chama de amigo, sussurrou o Oráculo em minha mente.E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa.
Cale a boca, respondi.
A chuva continua caindo.
Ficamos impacientes esperando o ônibus e decidimos brincar de footbag com uma das maçãs de Grover. Annabeth foi incrível. Ela era capaz de arremeter a maçã com o joelho, com o cotovelo, com o ombro, ou o que fosse. Eu mesmo não era de todo ruim. O jogo terminou quando arremessei a maçã para Grover e ela chegou perto demais da sua boca. Em uma megamordida de bode, nossa footbag desapareceu – miolo, pedúnculo e tudo.
Grover enrubesceu. Ele tentou se desculpar, mas Annabeth e eu estávamos muito ocupados dando risada.
Finalmente o ônibus chegou. Enquanto estávamos na fila para embarcar, Grover começou a olhar em volta, farejando o ar do jeito como farejava seu lanche favorito na cantina da escola – enchiladas.
– O que foi isso? – perguntei.
– Não sei – disse ele, tenso. – Talvez não seja nada.
Mas podia perceber que era alguma coisa. Também comecei a olhar para trás por cima do ombro.
Fiquei aliviado quando afinal embarcamos e encontramos lugar juntos na parte de trás do ônibus. Guardamos nossas mochilas. Annabeth batia nervosamente seu boné dos Yankees na coxa.
Quando os últimos passageiros subiram, Annabeth apertou com força o meu joelho.
– Percy.
Uma senhora acabava de embarcar no ônibus. Usava vestido de veludo amarrotado, luvas de renda e chapéu laranja, tricotado e disforme, que encobria seu rosto, e carregava uma grande bolsa de lã estampada. Quando ergueu a cabeça seus olhos pretos faiscaram, e meu coração deu um pulo.
Era a Sra. Dodds. Mais velha, mas enrugada, mas sem dúvida a mesma cara maligna. Eu me encolhi no assento.
Atrás dela subiram mais duas senhoras: uma de chapéu verde, outra de chapéu roxo. A não ser por isso, eram parecidíssimas com a Sra. Dodds – as mesmas mãos encarquilhadas, as mesmas bolsas de lã, os mesmo vestidos de veludo enrugados. Um trio de avós demoníacas.
Elas se sentaram na fileira da frente, logo atrás do motorista. As duas no corredor cruzaram as pernas bem na passagem, formando um X. Aquilo era bastante normal, mas enviava uma mensagem clara: ninguém sai.
O ônibus partiu da estação e seguimos pelas ruas escorregadias de Manhattan.
– Ela não ficou morta muito tempo – disse eu, tentando impedir minha voz de tremer. – Achei que você tivesse dito que eles podem ser afastados por toda uma vida.
– Eu disse, se você tiver sorte – disse Annabeth. – Você obviamente não tem.
– Todas as três – choramingou Grover. – Di immortales!
– Está tudo bem – disse Annabeth, obviamente se empenhando em pensar. – As Fúrias. Os três piores monstros do Mundo Inferior. Sem problemas. Sem problemas. Vamos simplesmente saltar pelas janelas.
– Não abrem – gemeu Grover.
– Uma saída nos fundos? – sugeriu ela.
Não havia nenhuma. E, mesmo que houvesse, não teria ajudado. Àquela altura, estávamos na Nona Avenida, em direção ao Túnel Lincoln.
– Elas não vão nos atacar com testemunhas em volta – disse eu. – Ou vão?
– Os mortais não têm bons olhos – lembrou-me Annabeth. – Seus cérebros só podem processar o que eles veem através da Névoa.
– Eles vão ver três velhas nos matando, não vão?
Ela pensou a respeito.
– Difícil dizer. Mas não podemos contar com a ajuda de mortais. Talvez uma saída de emergência no teto...?
Chegamos ao Túnel Lincoln, e o ônibus ficou às escuras a não ser pelas luzes do corredor. Estava assustadoramente silencioso sem o ruído da chuva.
A Sra. Dodds se levantou. Com uma voz inexpressiva, como se tivesse ensaiado aquilo, ela anunciou para o ônibus inteiro:
– Preciso usar o toalete.
– Eu também – disse a segunda irmã.
– Eu também – disse a terceira irmã.
Todas elas começaram a se aproximar pelo corredor.
– Já sei – disse Annabeth. – Percy, pegue meu chapéu.
– O quê?
– É você que elas querem. Fique invisível e siga pelo corredor. Deixe que elas passem por você. Talvez você possa chegar até a frente e escapar.
– Mas vocês...
– Há uma pequena possibilidade de que elas não reparem em nós – disse Annabeth. – Você é filho de um dos Três Grandes. Seu cheiro deve encobrir o nosso.
– Não posso abandonar vocês.
– Não se preocupe conosco – disse Grover. – Vá!
Minhas mãos tremiam. Eu me senti um covarde, mas peguei o boné dos Yankees e pus na cabeça.
Quando olhei para baixo, meu corpo não estava mais ali.
Comecei a me esgueirar pelo corredor. Consegui passar dez fileiras, depois me esquivei para um assento vazio bem quando as Fúrias passaram.
A Sra. Dodds parou, farejando, e olhou diretamente para mim. Meu coração estava disparado.
Parecia não ter visto nada. Ela e as irmãs continuaram andando.
Eu estava livre. Cheguei até a frente do ônibus. Já estávamos quase saindo do Túnel Lincoln. Estava a ponto de apertar o botão de parada de emergência quando ouvi lamentos abomináveis vindos da fileira do fundo.
As velhas não eram mais velhas. Os rostos ainda eram os mesmos – acho que seria impossível ficarem mais feios –, mas os corpos haviam murchado e tinham o aspecto de um couro marrom sobre formas de bruxas, com asas de morcego e mãos e pés como garras de gárgulas. As bolsas viraram chicotes chamejantes.
As Fúrias cercaram Grover e Annabeth estalando os chicotes e sibilando:
– Onde está? Onde?
As outras pessoas no ônibus estavam gritando, escondendo-se em seus bancos. Certo, elas viram alguma coisa.
– Ele não está aqui! – gritou Annabeth. – Saiu!
As Fúrias ergueram os chicotes.
Annabeth sacou a faca de bronze. Grover agarrou uma lata da sua sacola de lanches e se preparou para jogá-la.
O que eu fiz a seguir foi tão impulsivo e perigoso que eu merecia ser o rei do transtorno do déficit de atenção do ano.
O motorista do ônibus estava distraído, tentando enxergar o que estava acontecendo pelo espelho retrovisor.
Ainda invisível, agarrei o volante e dei um tranco para a esquerda. Todos gritaram ao serem jogados para a direita, e ouvi o que esperava ser o som das três Fúrias esmagadas contra as janelas.
– Ei! – gritou o motorista. – Ei! Oaaa!
Ele lutou para segurar o volante. O ônibus chocou-se com a lateral do túnel, o metal arrastado pela parede lançando fagulhas um quilômetro atrás de nós.
Saímos de lado do túnel, de volta à tempestade, com pessoas e monstros arremessados de um canto a outro do ônibus e carros jogados de lado como se fossem pinos de boliche.
De algum modo o motorista achou uma saída. Arremessamo-nos para fora da autoestrada, passamos meia dúzia de semáforos e acabamos disparando por uma daquelas estradas rurais de New Jersey, nas quais não dá para acreditar que exista tanto nada do outro lado do rio quando se deixa Nova York. Havia bosques à nossa esquerda e o rio Hudson à direita, e o motorista parecia se desviar na direção do rio.
Outra grande ideia: aperto o freio de emergência.
O ônibus gemeu, traçou um círculo completo sobre o asfalto molhado e se chocou contra as árvores. As luzes de emergência se acenderam. A porta se abriu. O motorista foi o primeiro a sair, com os passageiros gritando enquanto fugiam em pânico atrás dele. Subi no assento do motorista e deixei-os passar.
As Fúrias retomaram o equilíbrio. Estalaram os chicotes para Annabeth enquanto ela brandia a faca e gritava em grego antigo que recuassem. Grover atirava latas.
Olhei para a porta aberta. Eu estava livre para partir, mas não podia abandonar meus amigos. Tirei o boné invisível.
– Ei!
As Fúrias se viraram, mostrando as presas amareladas para mim, e a saída de repente me pareceu uma excelente ideia. A Sra. Dodds avançou de modo arrogante pelo corredor, como costumava fazer em classe, pronta para entregar meu F na prova de matemática. Cada vez que ela estalava o chicote, chamas vermelhas dançavam pelo couro farpado.
Suas duas irmãs horrorosas pularam para cima dos assentos de ambos os lados e se arrastaram na minha direção como dois lagartos enormes e asquerosos.
– Perseu Jackson – disse a Sra. Dodds com um sotaque que vinha de algum lugar mais distante do que o sul da Geórgia. – Você ofendeu os deuses. Você deve morrer.
– Eu gostava mais de você como professora de matemática – falei.
Ela rosnou.
Annabeth e Grover se aproximaram com cautela por trás das Fúrias, procurando uma passagem.
Tirei a esferográfica do bolso e a destampei. Contracorrente se alongou e virou uma reluzente espada de fio duplo.
As Fúrias hesitaram.
A Sra. Dodds já havia sentido a lamina de Contracorrente antes. Obviamente não gostou de vê-la de novo.
– Renda-se agora – sibilou. – E não sofrerá o tormento eterno.
– Boa tentativa – disse a ela.
– Percy, cuidado! – gritou Annabeth.
A Sra. Dodds lançou seu chicote em volta da mão com a qual eu segurava a espada, enquanto as Fúrias em cada lado pularam em cima de mim.
Era como se minha mão estivesse envolta em chumbo derretido, mas consegui não soltar Contracorrente. Atingi a Fúria da esquerda com o cabo e a mandei cambaleando de costas para a poltrona. Virei e fiz um corte na Fúria da direita. Assim que a lâmina entrou em contato com o pescoço dela, ela gritou e explodiu em pó. Annabeth agarrou a Sra. Dodds em um golpe de luta e a atirou para trás, enquanto Grover arrancava o chicote de suas mãos.
– Ai! – gritou ele. – Ai! Quente! Quente!
A Fúria que eu havia atingido com o cabo da espada veio de novo para cima de mim, garras à mostra, mas desferi um golpe com Contracorrente e ela estourou como um saco cheio de bolinhas de isopor.
A Sra. Dodds estava tentando tirar Annabeth das costas. Ela esperneou, arranhou, sibilou e mordeu, mas Annabeth se agarrou firme enquanto Grover amarrava suas pernas com seu próprio chicote. Depois os dois a empurraram de costas para o corredor.
A Sra. Dodds tentou se erguer, mas não havia espaço para ela bater as asas de morcego, portanto continuou caindo.
– Zeus o destruirá! – prometeu ela. – Hades terá sua alma!
– Braccas meas vescimini! – gritei.
Eu não sabia muito bem de onde viera o latim. Acho que queria dizer: “Coma as minhas calças!”
Um trovão sacudiu o ônibus. Os cabelos se eriçaram na minha nuca.
– Fora! – gritou Annabeth para mim. – Agora!
Não era necessário.
Corremos para fora e encontramos os outros passageiros andando de um lado para outro, atordoados, discutindo com o motorista ou correndo em círculos e gritando: “Nós vamos morrer!” Um turista de camisa com estampa havaiana e uma câmara bateu uma foto minha antes que eu pudesse pôr a tampa na minha espada.
– Nossas malas! – Grover se deu conta. – Nós deixamos nossas...
BUUUUUUM!!
As janelas do ônibus explodiram enquanto os passageiros corriam para se abrigar. Um relâmpago rasgara uma enorme cratera no teto, mas um lamento furioso lá dentro me disse que a Sra. Dodds ainda não estava morta.
– Corram! – disse Annabeth. – Ela está chamando reforços! Temos de sair daqui!
Mergulhamos para dentro dos bosques enquanto a chuva despencava torrencialmente, com o ônibus em chamas atrás de nós e nada à frente a não ser trevas.
Capítulo 11 - Nossa visita ao Empório de Anões de Jardim
De certo modo, é bom saber que há deuses gregos lá fora, porque aí temos alguém para culpar quando as coisas dão errado. Por exemplo, quando você está se afastando a pé de um ônibus que acaba de ser atacado por bruxas monstruosas e explodido por um relâmpago, e ainda por cima está chovendo, a maioria das pessoas acha que na verdade isso é apenas muita falta de sorte – quando se é um meio-sangue, a gente sabe que alguma força divina está tentando estragar o nosso dia.
Então lá estávamos nós, Annabeth, Grover e eu, andando pelos bosques ao longo da margem do rio, em New Jersey, as luzes de Nova York tornando o céu amarelo atrás de nós e o fedor do rio Hudson entrando por nosso nariz.
Grover estava tremendo e balindo, e seus grandes olhos de bode, cujas pupilas haviam se transformado em fendas, estavam cheios de terror.
– Três Benevolentes. As três de uma vez.
Eu mesmo estava em estado de choque. A explosão das janelas do ônibus ainda ecoava em meus ouvidos. Mas Annabeth nos fazia seguir, dizendo:
– Vamos! Quanto mais longe chegarmos, melhor.
– Todo o nosso dinheiro ficou lá atrás – lembrei. – Nossa comida e nossas roupas. Tudo.
– Bem, quem sabe se você não tivesse decidido entrar na briga...
– O que queria que eu fizesse? Deixasse vocês serem mortos?
– Você não precisava me proteger, Percy. Eu ia ficar bem.
– Fatiada como pão de fôrma – interveio Grover – mas bem.
– Cale a boca, garoto-bode – disse Annabeth.
Grover baliu, triste.
– As latas... Uma sacola de latas perfeitamente boa.
Nós chapinhamos pelas terras lamacentas, por entre horríveis árvores retorcidas que tinham um cheiro azedo de roupa suja.
Depois de alguns minutos, Annabeth veio para o meu lado.
– Olhe, eu... – sua voz vacilou. – Eu gostei de você ter voltado para nos defender, ok? Aquilo foi realmente corajoso.
– Somos uma equipe, certo?
Ela ficou em silêncio por mais alguns passos.
– É só que, se você morresse... além do fato de que seria realmente uma droga para você, isso significaria o fim da missão. Esta pode ser a minha única chance de ver o mundo real.
A tempestade havia finalmente acalmado. As luzes da cidade diminuíram atrás de nós, deixando-nos em uma escuridão quase total. Não conseguia ver nada de Annabeth a não ser um reflexo de seu cabelo loiro.
– Você não sai do Acampamento Meio-Sangue desde que tinha sete anos? – perguntei-lhe.
– Não... apenas excursões rápidas. Meu pai...
– O professor de história.
– É. Não deu certo morar em casa. Quer dizer, o Acampamento Meio-Sangue é a minha casa. – Ela agora estava despejando as palavras como se tivesse medo de que alguém a interrompesse. – No acampamento a gente treina, treina. E é legal e tudo mais, mas o mundo real é onde os monstros estão. É onde a gente descobre se serve para alguma coisa ou não.
Se não a conhecesse bem, poderia ter jurado que ouvi dúvida em sua voz.
– Você é muito boa com aquela faca – falei.
– Você acha?
– Qualquer um que seja capaz de montar nas costas de uma Fúria, para mim, é muito bom.
Não pude ver direito, mas acho que ela deu um sorrisinho.
– Sabe – disse ela – talvez eu deva lhe contar... Uma coisa engraçada lá no ônibus...
O que quer que ela quisesse dizer foi interrompido por um piado estridente, como o som de uma coruja sendo torturada.
- Ei, as minhas flautas de bambu ainda funcionam! – exclamou Grover. – Se ao menos eu pudesse me lembrar de uma melodia de “achar caminho”, poderíamos sair desses bosques!
Ele soprou algumas notas, mas a semelhança da melodia com a de Hilary Duff ainda era questionável.
Em vez de achar um caminho, imediatamente colidi com uma árvore e arranjei um galo de bom tamanho na cabeça.
Adicionar à lista de superpoderes que eu não tenho: visão infravermelha.
Depois de tropeçar, praguejar e, de modo geral, me sentir infeliz por mais um quilômetro ou algo assim, comecei a ver luzes à frente: as cores de um letreiro de neon.
Senti cheiro de comida. Comida frita, gordurosa, excelente. Percebi que não havia comido nada que não fosse saudável desde que chegara à Colina Meio-Sangue, onde vivíamos de uvas, pão, queijo e churrasco light preparado por ninfas. O garoto aqui precisava de um cheeseburguer duplo.
Continuamos andando até que vi por entre as árvores uma estrada deserta de duas pistas.
Do outro lado havia um posto de gasolina fechado, um cartaz de um filme dos anos 90 e uma loja aberta, que era a fonte de luz de neon e do cheiro gostoso.
Não era um restaurante de fast-food como eu esperava. Era uma dessas estranhas lojas de curiosidades de beira de estrada, que vendem flamingos de jardim, índios de madeira, ursos-pardos de cimento e coisas do gênero. A construção principal era um armazém comprido e baixo, cercado por quilômetros de estátuas. O letreiro de neon acima do portão era impossível de ler para mim, pois se existe coisa pior para a minha dislexia do que inglês normal, é inglês em letras cursivas, vermelhas, em neon.
Para mim, parecia MEOPRÓI ED NESÕA ED JIDARN AD IAT MEE.
– Que diabos que dizer aquilo? – perguntei.
– Não sei – disse Annabeth.
Ela gostava tanto de ler que eu esquecera que ela também era disléxica.
Grover traduziu:
– Empório de Anões de Jardim da Tia Eme.
Nas laterais da entrada, conforme anunciado, havia dois anões de jardim de cimento, uns nanicos e feios e barbados, sorrindo e acenando como se estivessem posando para uma fotografia.
Atravessei a rua, seguindo o cheiro dos hambúrgueres.
– Ei... – avisou Grover.
– As luzes estão acessas lá dentro – disse Annabeth. – Talvez esteja aberto.
– Lanchonete – falei, ansioso.
– Lanchonete – concordou ela.
– Vocês dois estão loucos? — disse Grover. – Este lugar é esquisito.
Nós o ignoramos.
O terreno da frente era uma floresta de estátuas: animais de cimento, crianças de cimento, até um sátiro de cimento tocando as flautas, o que deixou Grover arrepiado.
– Béééé! — baliu. — Parece meu tio Ferdinando!
Paramos diante da porta do armazém.
– Não bata — implorou Grover. — Sinto cheiro de monstros.
– Seu nariz está congestionado com as Fúrias – disse-lhe Annabeth. — O único cheiro que estou sentindo é de hambúrgueres. Você não está com fome?
– Carne! — disse ele, desdenhoso. — Sou vegetariano.
– Você come enchiladas de queijo e latas de alumínio – lembrei-o.
– São vegetais. Venham, vamos embora. Essas estátuas estão... olhando para mim.
Então a porta se abriu rangendo, e diante de nós estava uma mulher alta, do Oriente Médio — eu pelo presumi que fosse de lá, porque usava um longo vestido preto que escondia tudo menos as mãos, e sua cabeça estava totalmente coberta por um véu. Seus olhos brilhavam embaixo de uma cortina de gaze preta, mas isso foi tudo o que pude distinguir. As mãos cor de café pareciam velhas, mas bem cuidadas e elegantes, portanto imaginei que se tratasse de uma avó que fora outrora uma bonita dama.
O sotaque dela também tinha um quê do Oriente Médio. Ela disse:
– Crianças, já é muito tarde para estarem sozinhas na rua. Onde estão seus pais?
– Eles estão... ahn... – Annabeth começou a dizer.
– Nós somos órfãos – falei.
– Órfãos? – disse a mulher. A palavra soou estranha em sua boca. – Mas meus queridos! Certamente não!
– Nós nos perdemos da caravana — disse eu. — A caravana do nosso circo. O Mestre de cerimônias nos disse para encontrá-lo no posto de gasolina se nos perdêssemos, mas ele pode ter esquecido, ou talvez se referisse a outro posto de gasolina. De qualquer modo, estamos perdidos. Esse cheiro é de comida?
– Ah, meus queridos – disse a mulher. – Vocês precisam entrar, pobres crianças. Eu sou a tia Eme. Vão direto para os fundos do armazém, por favor. Ali há um lugar para refeições.
Agradecemos e entramos.
Annabeth murmurou para mim:
– Caravana do circo?
– Sempre há uma estratégia, certo?
– Sua cabeça está cheia de algas.
O armazém era abarrotado de mais estátuas – pessoas, todas em poses diferentes, usando roupas diferentes e com expressões diferentes no rosto. Fiquei imaginando que era preciso ter um jardim bem grande para alojar ainda que uma única estátua daquelas, porque eram todas em tamanho natural. Mas eu estava mesmo era pensando em comida.
Vá em frente, pode me chamar de idiota por ir entrando na loja de uma senhora estranha como aquela só porque estava com fome, mas às vezes faço as coisas por impulso.
Além disso, você nunca sentiu o cheiro dos hambúrgueres da tia Eme. O aroma era como um gás hilariante na cadeira do dentista – fazia sumir todo o resto. Mal reparei nos soluços nervosos de Grover, nem no modo como os olhos das estátuas pareciam me seguir ou no fato de que a tia Eme trancara a porta atrás de nós.
Tudo o que me preocupava era achar o lugar das refeições. E, sem duvida, lá estava, no fundo do armazém, um balcão de sanduíches com uma grelha, uma maquina de refrigerantes, uma estufa de pretzels e uma máquina de queijo nacho. Tudo o que poderíamos querer, mais algumas mesas de piquenique de aço na frente.
– Por favor, sentem-se – disse a tia Eme.
– Fantástico – comentei.
– Hum – disse Grover com relutância – não temos nenhum dinheiro, senhora.
Antes que eu pudesse dar uma cotovelada nas costelas dele, a tia Eme disse:
– Não, não, crianças. Nada de dinheiro. Esse é um caso especial, certo? Para órfãos tão simpáticos, é por minha conta.
– Obrigada, senhora – disse Annabeth.
Tia Eme enrijeceu-se, como se Annabeth tivesse dito algo de errado, mas depois, com a mesma rapidez, relaxou. Portanto achei que estivesse imaginando coisas.
– Não tem de quê, Annabeth. Você tem uns olhos cinzentos tão bonitos, criança. – Só depois me perguntei como ela sabia o nome de Annabeth, já que não tínhamos nos apresentado.
Nossa anfitriã desapareceu atrás do balcão e começou a cozinhar. Antes que eu me desse conta, ela nos tinha trazido bandejas de plástico com cheesburguer duplos, Milkshakes de baunilha e porções gigantes de batas fritas.
Eu já tinha comido metade do meu sanduíche quando me lembrei de respirar.
Annabeth sorveu ruidosamente seu milk-shake. Grover beliscou as batatas fritas e olhou para o papel-toalha da bandeja como quem poderia experimentar aquilo, mas ainda parecia nervoso demais para comer.
– O que é esse chiado? – perguntou ele.
Prestei atenção, mas não ouvi nada. Annabeth sacudiu a cabeça.
– Chiado? – perguntou tia Eme. – Talvez você esteja ouvindo o óleo de fritura. Você tem bons ouvidos, Grover.
– Eu tomo vitaminas. Para os ouvidos.
– Admirável – disse ela. – Mas, por favor, relaxe.
Tia Eme não comeu nada. Ela não descobrira a cabeça nem para cozinhar, e agora estava sentada com os dedos entrelaçados, observando enquanto comíamos. Era um pouco incômodo ser observado por alguém cujo o rosto eu não conseguia ver, mas me sentia satisfeito depois do sanduíche, e um pouco sonolento, e imaginei que o mínimo que podia fazer era puxar um pouco de conversa com nossa anfitriã.
– Então, você vende anões – falei, tentando parecer interessado.
– Ah, sim – disse tia Eme. – E animais. E pessoas. Tudo para o jardim. Sob encomenda. As estátuas são muito populares, sabe.
– Muito movimento nessa estrada?
– Não, nem tanto. Desde que a autoestrada foi construída... a maioria dos carros já não passa por este caminho. Preciso cuidar bem de cada cliente que recebo.
Senti um formigamento na nuca, como se alguém estivesse me observando. Virei-me, mas era apenas a estátua de uma garotinha segurando uma cesta de Páscoa. Os detalhes eram incríveis, muito melhores que os vistos na maioria das estátuas de jardim. Mas havia algo de errado com seu rosto. Ela parecia assustada, até aterrorizada.
– Ah! – disse tia Eme com tristeza. – Você pode notar que alguma das minhas criações não dão muito certo. Elas são defeituosas. Não vendem. O rosto é a parte mais difícil de sair perfeito. Sempre o rosto.
– Você mesma faz estas estátuas? – perguntei.
– Ah, sim. Já tive duas irmãs para me ajudar no negócio, mas elas faleceram, e a tia Eme ficou sozinha. Só tenho as minhas estátuas. É por isso que as faço, sabe? São minha companhia. – a tristeza na voz dela parecia tão profunda e tão real que não pude deixar de sentir pena.
Annabeth tinha parado de comer. Ela se inclinou e disse:
– Duas irmãs?
– É uma história terrível – disse tia Eme. – Não é para crianças, na verdade. Veja, Annabeth, uma mulher má estava com inveja de mim, muito tempo atrás, quando eu era jovem. Eu tinha um... um namorado, sabe, e essa mulher má estava determinada a nos separar. Ela provocou um acidente terrível. Minhas irmãs ficaram do meu lado. Compartilharam a minha má sorte enquanto foi possível, mas por fim morreram. Elas se esvaíram. Só eu sobrevivi, mas a um preço. Que preço.
Não entendi muito bem o que ela queria dizer, mas senti pena. Minhas pálpebras estavam cada vez mais pesadas, o estômago cheio me deixara sonolento. Coitada da velha senhora. Quem ia querer fazer mal a alguém tão gentil?
– Percy? – Annabeth me sacudia para chamar minha atenção. – Acho que devemos ir. Quer dizer, o mestre de cerimônias do circo deve estar esperando.
A voz dela pareceu tensa. Eu não sabia muito bem por quê. Grover estava comendo o papel encerado da bandeja, mas se tia Eme estranhou aquilo, não disse nada.
– Que olhos cinzentos bonitos – disse ela, outra vez para Annabeth. – Ah, mas faz muito tempo que não vejo olhos cinzentos como esses.
Ela estendeu o braço como se fosse acariciar o rosto de Annabeth, mas Annabeth se levantou abruptamente.
– Precisamos mesmo ir.
– Sim! – Grover engoliu o papel toalha encerado e pôs-se de pé. – O mestre de cerimônias está esperando! Isso!
Eu não queria ir. Estava satisfeito e contente. Tia Eme era muito gentil. Queria ficar um pouco com ela.
– Por favor, queridos – implorou a tia Eme. – É tão raro eu estar com crianças... Antes de ir, não gostariam de pelo menos de posar para uma foto?
– Uma foto? – perguntou Annabeth com cautela.
– Sim, uma fotografia. Vou usá-la como modelo para um novo conjunto de estátuas. Crianças são muito populares, sabem? Todo mundo ama crianças.
Annabeth se balançou de um pé para o outro.
– Acho que não podemos, senhora. Vamos, Percy...
– Claro que podemos – disse eu. Estava irritado com Annabeth por ser tão mandona, tão mal-educada com uma velha senhora que acabara de nos dar comida de graça. – É só uma foto, Annabeth. Qual é o problema?
– Sim, Annabeth – a mulher murmurou. – Não há mal nenhum.
Percebi que Annabeth não tinha gostado, mas deixou que tia Eme nos levasse para fora pela porta da frente, para o jardim de estátuas.
Tia Eme nos conduziu até um banco de jardim perto do sátiro de pedra.
– Agora – disse ela – vou posicionar vocês corretamente. A mocinha no meio, e os dois jovens cavalheiros em cada lado.
– Não há muita luz para uma foto – observei.
– Ah, é o suficiente – disse tia Eme. – Suficiente para enxergarmos um ao outro, não é?
– Onde está a sua câmera? – perguntou Grover.
Tia Eme deu um passo atrás, como que para admirar a foto.
– Agora, o rosto é o mais difícil. Vocês podem sorrir para mim, por favor, todo mundo? Um grande sorriso?
Grover deu uma olhada para o sátiro de cimento a seu lado e murmurou:
– Parece mesmo com o tio Ferdinando.
– Grover! – ralhou tia Eme. – Olhe para este lado, querido.
Ela ainda não tinha nenhuma câmera nas mãos.
– Percy... – disse Annabeth.
Algum instinto me advertiu a dar ouvidos a Annabeth, mas eu estava lutando contra a sensação de sono, a agradável moleza induzida pela comida e pela voz da velha senhora.
– Não vai demorar nem um segundo – disse tia Eme. – Sabe, não consigo vê-los muito bem por causa desse maldito véu...
– Percy, alguma coisa está errada – insistiu Annabeth.
– Errada? – disse tia Ema, erguendo as mãos para remover o véu em volta da cabeça. – De modo algum, querida. Estou em tão nobre companhia esta noite. O que poderia estar errado?
– Aquele é o tio Ferdinando! – disse Grover, arfando.
– Não olhem para ela! – gritou Annabeth. Num piscar de olhos, ela enfiou o boné dos Yankees na cabeça e desapareceu. Suas mãos invisíveis empurraram Grover e eu para fora do banco.
Eu me vi caído no chão, olhando para as sandálias nos pés de tia Eme. Pude ouvir Grover correndo para um lado e Annabeth para o outro. Mas eu estava aturdido demais para me mexer.
Então ouvi um som estranho, um chiado, acima de mim. Meus olhos se ergueram para as mãos de tia Eme, que se tornaram enrugadas e cheias de verrugas, com afiadas garras de bronze no lugar das unhas.
Quase olhei mais para o alto, mas em algum lugar à minha esquerda Annabeth gritou:
– Não! Não olhe!
Mais chiados – o som de pequenas serpentes, logo acima de mim, que vinham de... de onde deveria estar a cabeça da tia Eme.
– Corra! – baliu Grover.
Ouvi-o correndo pelos pedregulhos, gritando “Maia!” para dar partida em seus tênis voadores. Eu não conseguia me mexer. Fiquei olhando fixamente para as garras encarquilhadas de tia Eme, e tentei lutar contra o transe entorpecedor em que a velha me pusera.
– Que pena ter de destruir um jovem rosto tão bonito – disse-me em tom confortador. – Fique comigo, Percy. Tudo o que tem a fazer é olhar para cima.
Combati o ímpeto de obedecer. Em vez disso, olhei para o lado e vi uma daquelas bolas de vidro que as pessoas põem nos jardins – uma esfera espelhada. Pude ver o reflexo escuro de tia Eme no vidro alaranjado; seu véu se fora, revelando o rosto como um círculo pálido tremeluzente. Os cabelos se mexiam, se contorcendo como serpentes. Tia Eme. Tia “M”.
Como pude ser tão estúpido? Pense, disse a mim mesmo. Como foi que a Medusa morreu no mito? Mas eu não conseguia pensar. Algo me dizia que a Medusa do mito estava dormindo quando foi atacada por meu xará, Perseu. Agora, não estava nem um pouco sonolenta. Se quisesse, poderia usar aquelas garras ali mesmo e rasgar o meu rosto.
– A dos Olhos Cinzentos fez isso comigo, Percy – disse a Medusa, ela não soava como um monstro. Sua voz me convidava a olhar para cima, a simpatizar com a pobre vovó velhinha. – A mãe de Annabeth, a maldita Atena, transformou a bela mulher que eu era nisto aqui.
– Não dê ouvidos a ela! – gritou a voz de Annabeth, de algum lugar entre as estátuas. – Corra, Percy!
– Silêncio! – rosnou a Medusa. Depois sua voz voltou a ser um murmurar tranquilizante.
– Você está vendo por que preciso destruir a menina, Percy. Ela é filha de minha inimiga. Vou esmagar a sua estátua até virar pó. Mas você, querido, você não precisa sofrer.
– Não – murmurei. – Tentei fazer minhas pernas se mexerem.
– Você quer mesmo ajudar os deuses? – perguntou a Medusa. – Entende o que o espera nessa missão boba, Percy? O que acontecerá se chegar ao Mundo Inferior? Não seja um peão dos olimpianos, meu querido. Você estará melhor como estátua. Menos dor. Menos dor.
– Percy!
Atrás de mim, ouvi um zumbido, como o de um beija-flor de cem quilos dando um mergulho. Grover gritou:
– Abaixe-se!
Eu me virei, e lá estava ele, Grover, no céu noturno, vindo bem na minha frente, com os tênis voadores batendo as asas, segurando um galho de árvore do tamanho de um bastão de beisebol. Seus olhos estavam fechados com força, a cabeça se agitando de um lado para o outro. Guiava-se só pelos ouvidos e o nariz.
– Abaixe-se! – gritou ele de novo. – Vou pegá-la!
Aquilo por fim me acordou para ação. Conhecendo Grover, tinha certeza de que ele ia errar a Medusa e me acertar. Mergulhei para um lado.
Plaft!
De início pensei que fosse o som de Grover atingindo uma árvore. Então a Medusa rugiu de raiva.
– Seu sátiro miserável – rosnou. – Vou acrescentá-lo à minha coleção!
– Essa foi pelo tio Ferdinando! – gritou Grover de volta.
Saí correndo aos tropeções e me escondi entre as estátuas enquanto Grover mergulhava para mais um ataque.
Pimba!
– Aaargh! – berrou a Medusa, as serpentes do cabelo sibilando e cuspindo.
Bem ao meu lado, a voz de Annabeth disse:
– Percy!
Pulei tão alto que meus pés quase derrubaram um anão de jardim.
– Ai! Não faça isso!
Annabeth tirou o boné dos Yankees e se tornou visível.
– Você tem de cortar a cabeça dela.
– O quê?
– Está louca? Vamos dar o fora daqui.
– A Medusa é uma ameaça. Ela é má. Eu mesma a mataria, mas... – Annabeth engoliu em seco, como se estivesse prestes a admitir algo difícil. – Mas você tem a melhor arma. Além disso, nunca vou conseguir chegar perto dela. Ela me faria em pedacinhos por causa da minha mãe. Você... você tem uma chance.
– O quê? Eu não posso...
– Olhe, você quer que ela transforme mais gente inocente em estátua?
Ela apontou para as estátuas de um casal apaixonado, um homem e uma mulher abraçados, transformados em pedra pelo monstro.
Annabeth, agarrou uma esfera espelhada verde de um pedestal próximo.
– Um escudo espelhado seria melhor. – Ela estudou a esfera com ar crítico. – A convexidade causará uma certa distorção. O tamanho do reflexo estará distorcido por um fator de...
– Quer falar numa língua que eu entenda?
– Estou falando! – Ela me jogou a bola de vidro. – Só olhe para a Medusa pelo espelho.Nunca olhe diretamente para ela.
– Ei, gente! – gritou Grover em algum lugar acima de nós. – Acho que ela está inconsciente!
– Grrraaaurrr!
– Talvez não – corrigiu ele. E mergulhou para mais um ataque.
– Depressa – disse Annabeth para mim. – Grover tem um excelente nariz, mas vai acabar caindo.
Peguei minha caneta e tirei a tampa. A lâmina de bronze de Contracorrente se alongou em minha mão.
Segui os sons de silvos e cuspidas do cabelo de Medusa.
Mantive os olhos cravados na esfera espelhada para ver somente o reflexo do monstro, e não a coisa real. Então, no vidro tingido de verde, eu a enxerguei.
Grover vinha descendo para mais um assalto com o bastão, mas dessa vez voou um pouco baixo demais. A Medusa agarrou o bastão e o desviou do curso. Ele deu uma cambalhota no ar e tombou nos braços de um urso-pardo de pedra com um dolorido “Uummmpff”.
A Medusa estava a ponto de pular em cima dele quando eu gritei:
– Ei!
Avancei na direção dela, o que não foi fácil, segurando uma espada e uma bola de vidro. Se a Medusa atacasse, seria difícil me defender. Mas ela deixou que eu me aproximasse – seis metros, três metros.
Agora era possível para ver o reflexo do seu rosto. Certamente não era assim tão feio. As curvas verdes da bola espelhada deviam estar distorcendo a imagem, tornando-a ainda pior.
– Você não machucaria uma velhinha, Percy – sussurrou ela. – Sei que não faria isso.
Hesitei, fascinado pelo rosto que vi refletido no vidro – os olhos que pareciam arder refletidos no tom esverdeado, fazendo meus braços fraquejarem.
De cima do urso-pardo de cimento, Grover gemeu:
– Percy, não lhe dê ouvidos!
A Medusa gargalhou.
– Tarde demais.
Ela se lançou até mim com suas garras. Dei um golpe com a espada, ouvi um plof! nauseante, e então um chiado como o de vento escapando de uma caverna – o som de um monstro se desintegrando.
Algo caiu no chão ao lado do meu pé. Precisei reunir toda a minha força de vontade para não olhar. Pude sentir uma secreção morna empapando minha meia e pequenas serpentes agonizantes puxando os cadarços dos meus sapatos.
– Ah, eca! – disse Grover. Seus olhos ainda estavam bem fechados, mas imagino que conseguisse ouvir aquilo gorgolejando e fumegando. – Megaeca.
Annabeth se aproximou de mim, os olhos fixos no céu. Estava segurando o véu da Medusa.
– Não se mova – disse ela.
Com muito, muito cuidado, sem olhar para baixo, ajoelhou-se e embrulhou a cabeça do monstro no pano preto, depois a ergueu. Ainda estava pingando um suco verde.
– Tudo bem com você? – perguntou-me com a voz trêmula.
– Sim – concluí, embora sentisse vontade de vomitar meu cheeseburguer duplo. – Por que... por que a cabeça não evaporou?
– Depois que você a decepa, ela se torna um troféu de guerra – disse ela. – Como o chifre do Minotauro. Mas não a desembrulhe. Ainda pode petrificá-lo.
Grover gemeu enquanto descia da estátua do urso-pardo. Estava com um grande vergo na testa. O boné rastafári verde estava pendurado em um dos pequenos chifres de bode e os pés falsos haviam sido arrancados dos cascos. Os tênis mágicos voavam sem rumo em volta de sua cabeça.
– Nosso grande aviador – disse eu. – Bom trabalho, cara.
Ele conseguiu dar um sorriso envergonhado.
– Se bem que, na verdade, não foi nada divertido. Bem, a parte de acertá-la com o pau, isso foi bom. Mas me arrebentar contra um urso de concreto? Nada divertido.
Ele agarrou os tênis no ar. Eu pus a tampa em minha espada. Juntos, nós três voltamos cambaleando para o armazém. Encontramos alguns sacos plásticos velhos atrás do balcão de lanches e embrulhamos duas vezes a cabeça da Medusa. Com um plop, largamos a coisa em cima da mesa onde havíamos jantado e nos sentamos em volta, exaustos demais para falar. Por fim eu disse:
– Então temos de agradecer a Atena por esse monstro?
Annabeth me lançou um olhar irritado.
– A seu pai, na verdade. Medusa era namorada de Poseidon. Eles combinaram um encontro no templo de minha mãe. Foi por isso que Atena a transformou em monstro. A Medusa e suas irmãs, que a ajudaram a entrar no templo, se transformaram nas três Górgonas. É por isso que ela queria me picar em pedacinhos, mas ia conservar você como uma bela estátua. Ainda gosta de seu pai. Você deve tê-la feito se lembrar dele.
Meu rosto estava ardendo.
– Ah, então a culpa de termos encontrado a Medusa é minha?
Annabeth endireitou o corpo. Em uma péssima imitação de minha voz, disse:
– “É só uma foto, Annabeth. Qual é o problema?”
– Deixa para lá – falei. – Você é impossível.
– Você é insuportável.
– Você é...
– Ei! – Interrompeu Grover. – Vocês dois estão me dando enxaqueca. E sátiros nem têm enxaqueca. O que vamos fazer com a cabeça?
Eu olhei para aquilo. Uma pequena serpente estava pendurada para fora de um buraco no plástico. As palavras impressas no saco diziam: AGRADECEMOS SUA VISITA!
Eu estava zangado, não só com Annabeth ou a mãe dela, mas com todos os deuses por causa daquela missão, por nos terem tirado da estrada e pelas duas grandes batalhas logo no primeiro dia fora do acampamento. Nesse ritmo, jamais chegaríamos vivos a Los Angeles, muito menos antes do solstício de verão.
O que a Medusa tinha dito? Não seja um peão dos olimpianos, meu querido. Você estará melhor como estátua.
Eu me levantei.
– Volto já.
– Percy – chamou Annabeth. – O que você...
Vasculhei os fundos do armazém até encontrar o escritório da Medusa. Seu livro-caixa mostrava as seis vendas mais recentes, todas remessadas para o Mundo Inferior para decorar o jardim de Hades e Perséfone. De acordo com um nota de embarque, o endereço de cobrança do Mundo Inferior era os Estúdios de Gravação M.A.C. – Morto ao Chegar -, West Hollywood, Califórnia. Dobrei a nota e a enfiei no bolso.
Na caixa registradora encontrei vinte dólares, uns dracmas de ouro e algumas guias de remessa do Expresso Noturno de Hermes, cada qual com uma pequena bolsa de couro anexa, para moedas. Vasculhei o restante do escritório até encontrar uma caixa do tamanho certo.
Voltei para a mesa de piquenique, encaixotei a cabeça da Medusa e preenchi uma guia de remessa:
AOS DEUSES
MONTE OLIMPO,
600º ANDAR,
EDIFÍCIO EMPIRE STATE
NOVA YORK, NY
COM OS MELHORES VOTOS,
PERCY JACKSON
– Eles não vão gostar disso – advertiu Grover. – Vão achá-lo impertinente.
Coloquei alguns dracmas de ouro na bolsa anexa. Assim que a fechei, veio um som como o de uma caixa registradora. O pacote flutuou para fora da mesa e desapareceu com um pop!
– Eu sou impertinente – disse.
Olhei para Annabeth, desafiando-a a me criticar.
Ela não criticou. Parecia resignada com o fato de eu ter um talento especial para chatear os deuses.
– Vamos – murmurou ela. – Precisamos de um novo plano.
Capítulo 12 - Um poodle é o nosso conselheiro
Estávamos nos sentindo superinfelizes naquela noite.
Acampamos no bosque, a cem metros da estrada principal, em uma clareira pantanosa que as crianças do lugar obviamente vinham usando para festas. O chão estava repleto de latas de refrigerantes amassadas e embalagens de fast-food.
Tínhamos pego um pouco de comida e cobertores da tia Eme, mas não ousamos acender uma fogueira para secar nossas roupas molhadas. As Fúrias e a Medusa já haviam proporcionado animação suficiente para um dia. Não queríamos atrair mais nada.
Decidimos dormir em turnos. Prontifiquei-me a ser o primeiro a ficar de guarda. Annabeth enroscou-se sobre os cobertores e já estava roncando quando sua cabeça tocou o chão. Grover subiu com seus tênis voadores para o galho mais baixo de uma arvore, encostou-se no tronco e ficou olhando para o céu da noite.
– Vá em frente e durma – disse a ele. – Acordo você se houver problemas.
Ele assentiu, mas ainda assim não fechou os olhos.
– Isso me deixa triste, Percy.
– O quê? Ter se juntado a essa missão estúpida?
– Não. Isso me deixa triste. – Ele apontou para todo aquele lixo no chão. – E o céu. Não dá nem para ver as estrelas. Eles poluíram o céu. Esta é uma época terrível para ser um sátiro.
– Ah, sim. Acho que você seria um ambientalista.
Ele me lançou um olhar penetrante.
– Só um ser humano não seria. Sua espécie está entulhando o mundo tão depressa que... Ora, não importa. É inútil fazer sermões para um ser humano. Do jeito que as coisas vão, nunca encontrarei Pan.
– Que Pan?
– Pan! – bradou, indignado. – P-A-N. O grande deus Pan! Acha que quero uma licença de buscador para quê?
Uma brisa estranha faz farfalhar a clareira, encobrindo por um momento o fedor de lixo e putrefação. Trazia o cheiro de frutas e flores selvagens, e de água limpa de chuva, coisas que devem ter existido algum dia naqueles bosques. De repente, senti saudades de algo que jamais conhecera.
– Fale-me sobre a busca – disse eu.
Grover olhou para mim com receio, como se temesse que eu estivesse apenas me divertindo às custas dele.
– O Deus dos Lugares Selvagens desapareceu há dois mil anos – contou. – Um marinheiro vindo da costa de Éfeso ouviu uma voz misteriosa gritando na praia: “Conte a eles que o grande deus Pan morreu!” Quando os seres humanos ouviram a notícia, acreditaram. Estão pilhando o reino de Pan desde então. Mas, para os sátiros, Pan era nosso senhor e mestre. Era nosso protetor, e também dos lugares selvagens na Terra. Não acreditamos que tenha morrido. A cada geração, os sátiros mais valentes empenham a vida para encontrar Pan. Eles esquadrinham o planeta, explorando todos os locais mais selvagens à espera de encontrar o lugar onde ele se esconder e despertá-lo de seu sono.
– E você quer ser um buscador.
– É o sonho da minha vida – disse ele. – Meu pai era um buscador. E meu tio
Ferdinando... a estátua que você viu lá...
– Ah, certo, desculpe.
Grover sacudiu a cabeça.
– Tio Ferdinando sabia os riscos. Meu pai também. Mas eu terei sucesso. Serei o primeiro buscador a retornar com vida.
– Espere... o primeiro?
Grover tirou suas flautas de bambu do bolso.
– Nenhum buscador jamais voltou. Depois que partem, eles desaparecem. Nunca mais são vistos vivos de novo.
– Nem uma vez em dois mil anos?
– Não.
– E seu pai? Você não tem ideia do que aconteceu com ele?
– Nenhuma.
– Mas ainda assim quer ir – falei, admirado. – Quer dizer, você realmente acha que será você quem vai encontrar Pan?
– Preciso acreditar nisso, Percy. Todo buscador acredita. É a única coisa que nos impede de ficar desesperados quando olharmos para o que os seres humanos fizeram com o mundo. Tenho de acreditar que Pan ainda pode estar despertado.
Olhei para o nevoeiro alaranjado do céu e tentei entender como Grover podia perseguir um sonho que parecia tão impossível. Mas, por outro lado, será que eu era melhor?
– Como vamos entrar no Mundo Inferior? – perguntei. – Quer dizer, que chances temos contra um deus?
– Eu não sei – admitiu ele. – Mas antes, na casa da Medusa, quando você estava vasculhando o escritório dela, Annabeth me disse...
– Ah, esqueci. Annabeth sempre tem um plano todo esquematizado.
– Não seja tão duro com ela, Percy. Annabeth teve uma vida difícil, mas é boa pessoa. Afinal, ela me perdoou... – ele se interrompeu.
– O que quer dizer? – perguntei. – Perdoou o quê?
De repente, Grover pareceu muito interessado em tirar notas das suas flautas.
– Espere um minuto – disse eu. – Seu primeiro trabalho de guardião foi cinco anos atrás. Annabeth está no acampamento há cinco anos. Ela não era... quer dizer, a sua primeira tarefa que deu errado...
– Não posso falar sobre isso – disse Grover, e o tremor em seu lábio inferior me sugeriu que ele começaria a chorar se eu o pressionasse. – Mas como eu estava dizendo, lá na casa da Medusa Annabeth e eu achamos em que há algo estranho com esta missão. Algo que não é o que parece.
– Ah, novidades. Estou sendo acusado de roubar um relâmpago que foi Hades quem pegou.
– Não me refiro a isso. As Fú... as Benevolentes pareciam estar se segurando. Como a Sra. Dodds na Academia Yancy... por que ela esperou tanto tempo para tentar matá-lo? Depois, no ônibus, elas não foram tão agressivas quanto poderiam.
– Elas me pareceram bastante agressivas.
Grover sacudiu a cabeça.
– Estavam guinchando para nós: “Onde está? Onde?”
– Perguntavam sobre mim – falei.
– Talvez... mas tanto eu como Annabeth tivemos a sensação de que não estavam perguntando sobre uma pessoa. Elas perguntaram apenas “Onde está?”, e não onde ele ouela está. Pareciam falar de um objeto.
– Isso não faz sentido.
– Eu sei. Mas, se tivermos entendido mal alguma coisa a respeito desta missão, e só temos nove dias para encontrar o raio-mestre... – Ele olhou para mim como se estivesse esperando por respostas, mas eu não tinha nenhuma.
Pensei no que a Medusa dissera: eu estava sendo usado pelos deuses. O que me aguardava era pior que a petrificação.
– Não fui sincero com você – contei a Grover. – Eu não me importo com o raio-mestre. Concordei em ir para o Mundo Inferior para poder trazer de volta a minha mãe.
Grover soprou uma nota suave nas suas flautas.
– Eu sei, Percy. Mas você tem certeza de que esse é o único motivo?
– Não estou fazendo isso para ajudar meu pai. Ele não se importa comigo eu não me importo com ele.
Do seu galho, Grover olhou atentamente para baixo.
– Olhe, Percy. Não sou tão esperto quanto Annabeth. Não sou tão valente quanto você. Mas sou muito bom em ler emoções. Você está contente porque seu pai está vivo. Sente-se bem pelo fato de ele o ter assumido como filho, e parte de você quer que ele fique orgulhoso. Foi por isso que você despachou a cabeça da Medusa para o Olimpo. Você queria que ele visse o que você fez.
– É mesmo? Bem, talvez as emoções dos sátiros funcionem de um jeito diferente das emoções humanas. Porque você está errado. Não me importo com o que ele pensa.
Grover puxou os pés para cima do galho.
– Certo, Percy. Tanto faz.
- Além disso, não fiz nada demais para me vangloriar. Mas saímos de Nova York e já estamos aqui encalhados sem dinheiro e sem ter como ir para o oeste.
Grover olhou para o céu noturno, como se estivesse pensando no problema.
– Que tal eu ficar com o primeiro turno, hein? Vá dormir um pouco.
Eu quis protestar, mas ele começou a tocar Mozart, suava e doce, e eu me virei para o outro lado, os olhos ardendo. Depois de algumas notas do Concerto para Piano n°12 eu estava dormindo.
Em meus sonhos, eu estava em uma caverna escura à beira de um enorme abismo. Criaturas cinzentas de névoa se revolviam à minha volta, sussurrando tiras de fumaça que eu, de algum modo, sabia que eram os espíritos dos mortos.
Eles puxavam as minhas roupas, tentando me empurrar de volta, mas eu me sentia compelido a andar para frente, para a beira. Olhar para baixo me dava vertigens. O abismo se abria tão voraz e tão largo, e era tão completamente negro, que eu sabia que não devia ter fundo. Contudo tinha a sensação de que algo tentava emergir dali, algo enorme e maligno.
O pequeno herói, ressoou uma voz em deleite, vinda lá de baixo, das trevas. Fraco demais, jovem demais, mas talvez você sirva.
A voz parecia ancestral – fria e pesada. Envolveu-me como lençóis de chumbo.
Eles o enganaram, menino, disse ela. Faça comigo uma troca. Eu lhe darei o que quer.
Uma imagem tremeluzente pairou acima do vazio: minha mãe, congelada no momento em que se dissolveu em uma chuva de ouro. Seu rosto estava distorcido de dor, como se o Minotauro ainda apertasse seu pescoço. Os olhos me encaravam, implorando: Vá!
Tentei gritar, mas minha voz não saiu. De dentro do abismo, um riso frio ecoou.
Uma força invisível me puxou para frente. Ia me arrastar para o precipício se eu não aguentasse firme.
Ajude-me a subir, menino. A voz ficou mais ávida. Traga-me o raio. Desfira um golpe contra os deuses traiçoeiros!
Os espíritos dos mortos sussurravam à minha volta: Não! Acorde!
A imagem da minha mãe começou a sumir. A coisa no abismo apertou sua garra invisível em volta de mim. Percebi que ela não queria me puxar para dentro. Estava me usando para erguer a si mesma para fora.
Bom, a coisa murmurou. Bom.
Acorde! sussurraram os mortos. Acorde!
Alguém estava me sacudindo.
Meus olhos se abriram, e era dia.
– Ah! – disse Annabeth. – O zumbi volta à vida.
Eu tremia por causa do sonho. Ainda podia sentir o aperto do monstro do abismo em volta do meu peito.
– Quanto tempo estive dormindo?
– O suficiente para eu preparar o café da manhã – Annabeth me jogou um saco de flocos de milho sabor nacho, da lanchonete da tia Eme. – E para Grover sair e explorar. Olhe, ele encontrou um amigo.
Tive dificuldades em focalizar o olhar. Grover estava sentado de pernas cruzadas em um cobertor com alguma coisa felpuda no colo, um bicho de pelúcia sujo e de um cor-de-rosa artificial. Não. Não era um animal de pelúcia. Era um poodle cor-de-rosa. O poodle latiu para mim, desconfiado. Grover disse:
– Não, ele não é.
Eu pisquei.
– Você está... falando com essa coisa?
O poodle rosnou.
– Esta coisa – avisou Grover – é nossa passagem para o oeste. Seja simpático com ele.
– Você pode falar com animais?
Grover ignorou a pergunta.
– Percy, apresento-lhe Gladiola. Gladiola, Percy.
Olhei para Annabeth, calculando que ela fosse rir da peça que eles estavam me pregando, mas ela pareceu extremamente séria.
– Não vou dizer olá para um poodle cor-de-rosa – falei. – Esqueça.
– Percy – disse Annabeth – eu disse olá para o poodle. Diga olá para o poodle.
O poodle rosnou.
Eu disse olá para o poodle.
Grover explicou que havia encontrado Gladiola no bosque e que começaram a conversar. O poodle tinha fugido de uma família endinheirada do lugar, que oferecera duzentos dólares de recompensa para quem o devolvesse. Gladiola na verdade não queria voltar para a família, mas estava disposto a fazê-lo, se isso fosse ajudar Grover.
– Como Gladiola sabe da recompensa? – perguntei.
– Ele leu os avisos – disse Grover. – Óbvio...
– É claro – retruquei. – Que bobagem a minha.
– Então nós entregamos Gladiola – explicou Annabeth, em seu melhor tom de estrategista – recebemos o dinheiro e compramos passagens para Los Angeles. Simples.
Pensei no sonho – as vozes sussurrantes dos mortos, a coisa no abismo e o rosto de minha mãe, tremeluzindo enquanto se dissolvia em dourado. Tudo aquilo podia estar esperando por mim no oeste.
– Não em outro ônibus – disse, cauteloso.
– Não – concordou Annabeth.
Ela apontou colina abaixo, para os trilhos de trem que eu não conseguira ver na noite anterior, no escuro.
– Há uma estação da Amtrack a um quilômetro naquela direção. De acordo com Gladiola, o trem para o oeste parte ao meio-dia.
Capítulo 13 - Meu mergulho para morte
Passamos dois dias no trem, rumo a oeste pelas colinas, por cima de rios, atravessando ondas de trigo cor de âmbar. Não fomos atacados nem uma vez, mas não relaxei. Sentia que estávamos viajando em uma vitrine, sendo observados de cima e, talvez de baixo, que alguma coisa estava aguardando o momento certo.
Tentei ser discreto, pois meu nome e fotografia estavam estampados nas primeiras páginas de vários jornais da Costa Leste. O Trenton Register-News publicou uma foto tirada por um turista quando desci do ônibus da Greyhound. Estava com uma expressão ensandecida nos olhos. Minha espada era um borrão metálico em minhas mãos. Poderia ser um taco de beisebol ou de lacrosse.
A legenda da foto dizia:
Percy Jackson, 12 anos, procurado para interrogatório sobre o desaparecimento em Long Island de sua mãe há duas semanas, aparece aqui fugindo do ônibus onde abordou diversas passageiras idosas. O ônibus explodiu no acostamento de uma rodovia a leste de New Jersey logo depois que Jackson fugiu da cena do crime. Com base em relatos de testemunhas, a polícia acredita que o menino possa estar viajando com dois cúmplices adolescentes. O padrasto, Gabe Ugliano, ofereceu uma recompensa em dinheiro para qualquer informação que leve à sua captura.
– Não se preocupe – disse-me Annabeth. – A polícia dos mortais nunca nos encontraria.
Mas não pareceu muito segura.
Passei o resto do dia alternando entre andar de uma ponta a outra do trem (pois para mim era difícil ficar sentado) e olhar pelas janelas. Numa oportunidade avistei uma família de centauros galopando por um campo de trigo, arcos de prontidão, como se estivessem caçando o almoço. O menininho centauro, que era do tamanho de um pônei, percebeu que eu estava olhando e acenou. Olhei em volta no vagão de passageiros, porém mais ninguém reparou. Os passageiros adultos estavam todos com a cara enterrada em laptops ou revistas.
Em outra, mais ao anoitecer, vi algo muito grande se movendo pelo bosque. Poderia jurar que era um leão, só que não há leões vivendo soltos nos Estados Unidos, e aquilo era do tamanho de um tanque de guerra. O pelo tinha reflexos dourados à luz do entardecer. Ele então saltou por entre as árvores e desapareceu.
O dinheiro de recompensa por devolver o poodle Gladiola só foi bastante para comprar passagens até Denver. Não pudemos comprar leitos no vagão-dormitório, então cochilamos nos assentos. Meu pescoço ficou duro. Tentei não babar enquanto dormia, já que Annabeth estava sentada bem a meu lado.
Grover ficou roncando e balindo, e me acordava. Num momento ele se agitou demais e um de seus pés falsos caiu. Annabeth e eu tivemos de enfiá-lo de volta antes que algum dos outros passageiros notasse.
– E então – Annabeth me perguntou depois que recolocamos o tênis de Grover – quem quer a sua ajuda?
– O que quer dizer?
– Quando estava dormindo agora mesmo, você murmurou “Não quero ajudar você”. Com quem estava sonhando?
Estava em dúvida sobre dizer alguma coisa. Era a segunda vez que sonhava com a voz maligna do abismo. Aquilo me incomodava tanto que, por fim, contei a ela. Annabeth ficou em silêncio por um bom tempo.
– Não parece ser Hades. Ele sempre aparece sentado em um trono negro, e nunca ri.
– Ele ofereceu minha mãe em troca. Quem mais poderia fazer isso?
– Eu acho... se ele queria dizer “Ajude-me a subir do Mundo Inferior”... Se ele quer guerra com os olimpianos... Mas por que pedir a você o raio-mestre, se ele já o tem?
Sacudi a cabeça, desejando saber a resposta. Pensei no que Grover havia contado, que as Fúrias no ônibus pareciam estar procurando alguma coisa.
Onde está? Onde?
Talvez Grover tivesse sentido as minhas emoções. Ele bufou dormindo, resmungou algo sobre vegetais, e virou a cabeça.
Annabeth ajeitou o boné dele para cobrir os chifres.
– Percy, você não pode negociar com Hades. Sabe disso, certo? Ele é enganador, cruel e ganancioso. Não me importo se suas Benevolentes não foram tão agressivas dessa vez...
– Dessa vez? – perguntei. – Você quer dizer que já cruzou com elas antes?
A mão dela deslizou até o colar. Ela manuseou uma conta branca vitrificada, na qual estava pintada a imagem de um pinheiro, um dos seus marcos de fim de verão, em argila.
– Digamos apenas que não morro de amores pelo Senhor dos Mortos. Você não pode ficar tentado a negociar sua mãe.
– O que faria se fosse seu pai?
– Essa é fácil – disse ela. – Eu o deixaria apodrecer.
– Sério?
Os olhos cinzentos de Annabeth se fixaram em mim. Estavam com a mesma expressão que vi no bosque, no acampamento, no momento em que ela puxou a espada contra o cão infernal.
– Meu pai me detestou desde o dia em que nasci, Percy – disse ela. – Ele nunca quis um bebê. Quando me ganhou, pediu a Atena que me levasse de volta e me criasse no Olimpo, porque estava muito ocupado com seu trabalho. Ela não ficou contente com isso. Disse a ele que os heróis têm de ser criados por seu parente mortal.
– Mas como... quer dizer, você não nasceu em um hospital...
– Apareci na porta do meu pai, em um berço de ouro, trazido do Olimpo por Zéfiro, o Vento Ocidental. Daí você imaginaria que meu pai se lembrasse disso como um milagre, não é? Como se, quem sabe, tivesse feito algumas fotos digitais ou algo do tipo. Mas ele sempre falou sobre a minha chegada como se fosse a coisa mais inconveniente que já lhe acontecera. Quando eu tinha cinco anos, ele se casou e esqueceu totalmente Atena. Arranjou uma esposa mortal “normal” e teve dois filhos mortais “normais”, e tentou fazer de conta que eu não existia.
Olhei pela janela do trem. As luzes de uma cidade adormecida estavam passando. Quis fazer Annabeth se sentir melhor, mas não sabia como.
– Minha mãe se casou com um cara horroroso demais – contei a ela. – Grover disse que ela fez isso para me proteger, para me esconder no cheiro de uma família humana. Quem sabe seu pai não estava pensando nisso?
Annabeth continuou focada em seu colar. Apertava o anel de formatura de ouro que estava pendurado entre as contas. Ocorreu-me que o anel devia ser do pai dela. Fiquei imaginando por que ela o usava se o odiava tanto.
– Ele não liga para mim – disse ela. – A mulher dele... minha madrasta... me tratava como uma aberração. Ela ia me deixar brincar com os filhos dela. Meu pai concordava. Sempre que acontecia alguma coisa perigosa... sabe, algo a ver com monstros... os dois me olhavam com raiva, do tipo “Como você ousa pôr nossa família em perigo”. No fim, entendi a indireta. Eu não era querida. Eu fugi.
– Que idade você tinha?
– A mesma idade que comecei o acampamento. Sete.
– Mas... você não ia conseguir chegar até a Colina Meio-Sangue sozinha.
– Não, sozinha não. Atena me protegeu, me guiou em direção à ajuda. Fiz amigos inesperados que cuidaram de mim, bem, por pouco tempo.
Quis perguntar o que havia acontecido, mas Annabeth parecia perdida em lembranças tristes. Então ouvi o som dos roncos de Grover e fiquei olhando para fora, pelas janelas do trem, enquanto os campos escuros de Ohio iam passando.
Perto do fim do nosso segundo dia no trem, em 13 de junho, oito dias antes do solstício de verão, passamos por algumas colinas douradas e sobre o rio Mississipi, e entramos em St. Louis.
Annabeth esticou o pescoço para ver o Portal em Arco, que me pareceu uma enorme alça de sacola de compras fincada na cidade.
– Eu quero fazer aquilo – suspirou ela.
– O quê? – perguntei.
– Construir algo como aquilo. Você já viu o Parthenon, Percy?
– Só em fotos.
– Algum dia eu vou vê-lo em pessoa. Vou construir o maior monumento aos deuses que já foi feito. Algo que vai durar mil anos.
Eu ri.
– Você? Uma arquiteta?
Não sei por que, mas achei aquilo engraçado: a ideia de Annabeth tentando ficar sentada em silêncio desenhando o dia inteiro.
As bochechas dela coraram.
– Sim, uma arquiteta. Atena espera que seus filhos criem coisas, não apenas as derrubem, como um certo deus dos terremotos.
Observei as águas marrons e turbulentas do Mississipi embaixo.
– Desculpe – disse Annabeth. – Isso foi maldoso.
– Não dá para trabalharmos juntos? – implorei. – Quer dizer, Atena e Poseidon não poderiam colaborar um com o outro?
Annabeth teve de pensar a respeito.
– Eu acho... a carruagem – disse ela, hesitante. – Minha mãe a inventou, mas Poseidon criou os cavalos saídos das cristas das ondas. Então eles tiveram de trabalhar juntos para torná-la completa.
– Então nós também podemos colaborar um com o outro. Certo?
Entramos na cidade. Annabeth olhava enquanto o Arco desaparecia atrás de um hotel.
– Acho que sim – disse, afinal.
Entramos na estação da rede ferroviária no centro da cidade. O alto falante nos avisou que teríamos uma parada de três horas antes de partir para Denver.
Grover se espreguiçou. Ainda despertando, disse:
– Comida.
– Vamos, menino-bode – disse Annabeth. – Fazer um passeio.
– Passeio?
– Até o Portal em Arco – disse ela. – Pode ser a minha única oportunidade de subir até o topo. Você vem ou não?
Grover e eu nos entreolhamos.
Eu queria dizer não, mas concluí que, se Annabeth ia, não poderíamos deixá-la sozinha.
– Desde que haja uma lanchonete sem monstros.
O Arco ficava a cerca de um quilometro e meio da estação. No fim do dia, as filas para entrar não eram tão longas. Seguimos cautelosamente pelo museu subterrâneo, olhando para vagões cobertos e outras sucatas do século XIX. Não era assim tão empolgante, mas Annabeth ia contando fatos interessantes sobre como o Arco fora construído e Grover me passava jujubas, portanto, para mim estava bom. Mas fiquei olhando em volta, para as outras pessoas na fila.
– Está sentindo algum cheiro? – murmurei para Grover.
Ele tirou o nariz do saco de jujubas por tempo suficiente para farejar.
– Subterrâneo – disse ele enojado. – O ar embaixo da terra sempre tem cheiro de monstros. Provavelmente não quer dizer nada.
Mas eu tinha a sensação de que algo estava errado. Tinha a sensação de que não devíamos estar ali.
– Gente – disse eu – vocês conhecem os símbolos de poder dos deuses?
Annabeth estava no meio da leitura sobre o equipamento de construção usado para erigir o Arco, mas deu uma olhada.
– Sim?
– Bem, Hades...
Grover pigarreou.
– Estamos em local público... Você quer dizer, o nosso amigo do andar de baixo?
– Ahn, certo – falei. – Nosso amigo do andar muito de baixo. Ele não tem um chapéu como o de Annabeth?
– Você quer dizer o Elmo das Trevas – disse Annabeth. – Sim, é seu símbolo de poder. Eu o vi junto ao assento dele durante a assembleia do solstício de inverno.
– Ele estava lá? – perguntei.
Ela assentiu.
– É a única ocasião em que ele tem permissão de visitar o Olimpo – o dia mais escuro do ano. Mas, se o que ouvi é verdade, o elmo é muito mais poderoso que meu boné da invisibilidade...
– Permite que ele se transforme em trevas – confirmou Grover. – Ele pode se fundir com as sombras ou passar através de paredes. Não pode ser tocado nem visto nem ouvido. E pode irradiar um medo tão intenso que é capaz de enlouquecer você, ou fazer seu coração parar de bater. Por que acha que todas as criaturas racionais têm medo do escuro?
– Mas então... como sabemos se ele não está aqui agora mesmo, nos observando? – perguntei.
Annabeth e Grover se entreolharam.
– Nós não sabemos – disse Grover.
– Obrigado, agora me sinto muito melhor – falei. – Ainda sobrou alguma jujuba azul?
Tinha quase controlado meu desespero quando vi o minúsculo elevador no qual iríamos subir até o topo do Arco, e percebi que estava encrencado. Odeio espaços confinados. Eles me deixam doido.
Fomos espremidos dentro do elevador junto com uma senhora grande e gorda e seu cão, um chihuahua com uma coleira de falsos brilhantes. Calculei que talvez o chihuahua fosse um cão-guia, por que nenhum dos guardas disse uma palavra a respeito.
Começamos a subir dentro do Arco. Eu nunca havia estado em um elevador que subia em curva, e meu estômago não gostou muito.
– Sem os pais? – perguntou-nos a senhora gorda.
Tinha olhos pequenos, redondos e brilhantes; dentes pontudos e manchados de café; um chapéu mole de jeans e um vestido de jeans armado demais. Parecia um dirigível jeans.
– Eles estão lá embaixo – disse Annabeth. – Têm medo de altura.
– Ah, pobrezinhos.
O chihuahua rosnou. A mulher disse:
– Vamos, vamos, filhinho. Comporte-se. – O cão tinha olhos pequenos, redondos e brilhantes como os da dona, inteligentes e malvados.
Eu disse:
– Filhinho. É o nome dele?
– Não.
Ela falou e sorriu, como se aquilo esclarecesse tudo.
No topo do Arco, a plataforma de observação me lembrou uma lata acarpetada. Fileiras de janelinhas davam para a cidade, de um lado, e para o rio, do outro. A vista era legal, mas se existe uma coisa de que gosto ainda menos que lugar fechado, é um lugar fechado a duzentos metros de altura.
Annabeth seguiu falando sobre suportes estruturais e sobre como teria feito as janelas maiores e projetado um piso transparente. Ela poderia ter ficado lá em cima horas a fio, mas, para minha sorte, o guarda anunciou que a plataforma de observação seria fechada em poucos minutos.
Guiei Grover e Annabeth em direção à saída, enfiei-os no elevador e estava quase entrando quando me dei conta de que já havia outros dois turistas lá dentro. Não tinha espaço para mim.
O guarda disse:
– Próximo carro, senhor.
– Vamos sair – disse Annabeth. – Vamos esperar com você.
Mas aquilo ia atrapalhar todo mundo e levar ainda mais tempo, então eu disse:
– Não, tudo bem. Vejo vocês lá embaixo.
Grover e Annabeth pareceram nervosos, mas deixaram a porta do elevador se fechar. O carro desapareceu rampa abaixo.
Agora as únicas pessoas que restavam na plataforma de observação éramos eu, um garotinho com os pais, o guarda e a senhora gorda com o chihuahua.
Sorri pouco à vontade para a senhora gorda. Ela sorriu de volta, a língua bifurcada tremulando entre os dentes. Espere um minuto. Língua bifurcada?
Antes que eu pudesse concluir se tinha realmente visto aquilo, o chihuahua pulou no chão e começou a latir para mim.
– Vamos, vamos, filhinho – disse a senhora. – Não está divertido? Temos todas essas pessoas simpáticas aqui.
– Cachorrinho! – disse o menino. – Olhe, um cachorrinho!
Os pais o puxaram de volta.
O chihuahua arreganhou os dentes para mim, a espuma pingando dos lábios negros.
– Bem, meu filho – suspirou a senhora gorda. – Se você insiste.
Meu estômago começou a gelar.
– Ahn, você chamou esse chihuahua de filho?
– Quimera, querido – corrigiu a senhora gorda. – Não é um chihuahua. É um engano muito comum.
Ela arregaçou as mangas jeans, mostrando que a pele de seus braços era escamosa e verde. Quando sorriu, vi que seus dentes eram presas. As pupilas dos olhos eram fendas verticais, como as dos répteis.
O chihuahua latiu mais alto, e a cada latido ele crescia. Primeiro ficou do tamanho de um doberman, depois de um leão. O latido se transformou em rugido.
O menininho gritou. Os pais o puxaram para a saída, bem na direção do guarda, que estava paralisado, de olhos arregalados para o monstro.
A Quimera estava tão alta que suas costas tocavam o teto. Tinha cabeça de leão, com a juba untada de sangue, o corpo e os cascos de um bode gigante e uma serpente no lugar da cauda, losangos de três metros de comprimento brotavam do traseiro peludo. Ainda tinha no pescoço a coleira de falsos brilhantes e a placa, do tamanho de um prato, era agora fácil de ler: QUIMERA – RAIVOSA, HÁLITO DE FOGO, VENENOSA – SE ENCONTRADA, FAVOR LIGAR PARA O TÁTARO – RAMAL 954.
Percebi que não havia sequer tirado a tampa da minha espada. Minhas mãos estavam amortecidas. Eu estava a três metros da bocarra sangrenta da Quimera, e sabia que assim que me mexesse a criatura iria investir.
A mulher-cobra fez um som sibilante que poderia ter sido uma risada.
– Sinta-se honrado, Percy Jackson. O Senhor Zeus raramente me permite pôr um herói à prova com um de minha prole. Pois eu sou a Mãe dos Monstros, a terrível Equidna!
Olhei para ela. Tudo que eu pude pensar foi:
– Isso não é o nome de bicho que come formigas?
Ela uivou, a cara de réptil ficou marrom e verde de raiva.
– Detesto quando as pessoas dizem isso! Detesto a Austrália! Dar meu nome àquele animal ridículo. Por causa disso, Percy Jackson, meu filho o destruirá!
A Quimera avançou, os dentes de leão rangendo. Consegui pular para o lado e me esquivar da mordida. Fui parar junto da família e do guarda, que agora estavam todos gritando, tentando abrir à força as portas da saída de emergência. Não podia deixar que eles fossem feridos. Tirei a tampa da espada, corri para o outro lado da plataforma e gritei:
– Ei, chihuahua!
A Quimera se virou mais depressa do que eu achava possível. Antes que eu pudesse erguer a espada, ela abriu a boca, soltando um mau cheiro como o da maior churrasqueira do mundo, e lançou uma coluna de chamas bem em cima de mim.
Mergulhei através da explosão. O carpete explodiu em chamas; o calor foi tão intenso que quase queimou minhas sobrancelhas.
O lugar onde eu estava um momento antes se tornara um buraco esfarrapado na lateral do Arco, com metal derretido fumegando nas bordas. Essa é boa, pensei. Acabamos de soldar um monumento nacional.
Contracorrente era agora uma lamina de bronze reluzente em minhas mãos, e quando a Quimera se virou, eu a golpeei com violência no pescoço.
Foi um erro fatal. A lâmina faiscou sem efeito contra a coleira de cachorro. Tentei recuperar o equilíbrio, mas estava tão preocupado em me defender da boca chamejante de leão que me esqueci completamente da cauda de serpente, até que ela fez uma volta e cravou as presas na minha panturrilha.
Minha perna inteira ardeu em fogo. Tentei enfiar Contracorrente na boca da Quimera, mas a cauda de serpente enrolou-se nos meus tornozelos e me desequilibrou, e a espada voou de minha mão, saiu rodopiando pelo buraco no Arco e caiu no rio Mississipi.
Consegui ficar em pé, mas sabia que tinha perdido. Estava desarmado. Podia sentir o veneno letal subindo por meu peito. Lembrei-me de Quíron dizendo que Anaklusmos sempre voltaria para mim, mas não havia nenhuma caneta em meu bolso. Talvez estivesse caído longe demais. Ou só voltasse quando estava em forma de caneta. Eu não sabia, e não ia viver o bastante para descobrir.
Recuei para o buraco na parede. A Quimera avançou, rosnando e soltando espirais de fumaça pelos lábios. A mulher-serpente, Equidna, gargalhou.
– Já não se fazem mais heróis como antigamente, hein, filho?
O monstro rosnou. Parecia não estar com pressa de acabar comigo, agora que eu estava derrotado.
Dei uma olhada para o guarda e a família. O menininho se escondia atrás das pernas do pai. Eu tinha de proteger aquelas pessoas. Não podia simplesmente... morrer. Tentei pensar, mas meu corpo inteiro estava em fogo. Minha cabeça girava. Eu não e tinha espada. Estava enfrentando um monstro imenso, que cuspia fogo, e sua mãe. E estava apavorado.
Não havia outro lugar para ir, portanto subi na beira do buraco. Muito, muito embaixo, o rio brilhava. Será que se eu morresse os monstros iriam embora? Deixariam os humanos em paz?
– Se você é o filho de Poseidon – sibilou Equidna – então não tem medo da água. Pule, Percy Jackson. Mostre-me que a água não lhe fará mal. Pule e recupere a espada. Prove a sua linhagem.
Sim, certo, pensei. Eu tinha lido em algum lugar que pular na água da altura de alguns andares era como se atirar em asfalto. Dali, eu ia me desfazer em pedaços com o impacto.
A boca da Quimera estava vermelha, incandescente, preparando uma nova rajada de fogo.
– Você não tem fé – disse a Quimera. – Não confia nos deuses. Não posso culpá-lo, pequeno covarde. Melhor que morra agora. Os deuses são infiéis. O veneno está no seu coração.
Ela estava certa: eu estava morrendo. Podia sentir a respiração falhando. Ninguém poderia me salvar, nem mesmo os deuses.
Recuei e olhei para a água lá embaixo. Lembrei-me do calor do sorriso de meu pai quando eu era um bebê. Ele deve ter me visto. Deve ter me visitado quando eu estava no berço.
Lembrei-me do tridente verde que aparecera girando acima da minha cabeça na noite da captura da bandeira, quando Poseidon me reconheceu como seu filho. Mas aquilo não era o mar. Aquilo era o Mississipi, bem no meio dos Estados Unidos. Ali não havia nenhum Deus do mar.
– Morra, infiel – disse a voz rouca de Equidna, e a Quimera mandou uma coluna de fogo na direção de meu rosto.
– Pai, me ajude – implorei.
Virei-me e pulei. Minhas roupas em chamas, o veneno correndo por minhas veias, mergulhei no rio.
Capítulo 14 - Me torno um fugitivo conhecido
Eu adoraria contar que tive alguma revelação profunda enquanto caía, que aprendi a aceitar minha própria mortalidade, que ri em face da morte etc.
A verdade? Meu único pensamento foi: Aaaaarggghhhh!
O rio vinha em minha direção na velocidade de um caminhão. O vento arrancou o fôlego dos meus pulmões. Torres, arranha-céus e pontes giravam entrando e saindo do meu campo de visão. E então...
Cata-puuum!
Um turbilhão de bolhas. Afundei nas trevas, certo de que acabaria engolindo por trinta metros de lama e perdido para sempre. Mas meu impacto com a água não doeu. Eu estava agora descendo lentamente, com bolhas passando por entre meus dedos. Fui parar no fundo do rio, em silêncio. Um peixe-gato do tamanho do meu padrasto se afastou com uma guinada para a escuridão.
Nuvens de lodo e lixo nojento – garrafas de cerveja, sapatos velhos, sacos plásticos – giravam ao meu redor.
Àquela altura me dei conta de algumas coisas. Primeiro: eu não tinha sido achatado como uma panqueca. Não havia sido assado como churrasco. Não sentia nem mesmo o veneno da Quimera fervendo em minhas veias. Eu estava vivo, o que era bom. Segundo: eu não estava molhado. Quer dizer, conseguia sentir a friagem da água. Podia ver onde o fogo em minhas roupas tinha sido apagado. Mas, quando toquei minha camisa, parecia perfeitamente seca.
Olhei para o lixo que passava flutuando e agarrei um velho isqueiro. Sem chance, pensei. Risquei o isqueiro. Uma faísca saltou. Uma chama pequenina apareceu, bem ali, no fundo do Mississipi.
Agarrei uma embalagem ensopada de hambúrguer na corrente e o papel secou imediatamente. Queimei-o sem problemas. Assim que o soltei, as chamas bruxulearam e se apagaram. A embalagem voltou a se transformar em um trapo viscoso.
Esquisito. Mas a ideia mais estranha me ocorreu por último: eu estava respirando. Estava embaixo d’água e respirava normalmente. Fiquei de pé, afundado até as coxas na lama. Sentia as pernas trêmulas. As mãos tremiam. Eu devia estar morto. O fato de não estar parecia... bem, um milagre. Imaginei
uma voz de mulher, uma voz que parecia um pouco com a da minha mãe: Percy, como é que se diz?
– Ahn... muito obrigado. – Embaixo d’água, minha voz soava como em gravações, idêntica à de um garoto muito mais velho. – Muito obrigado... pai.
Nenhuma resposta. Apenas o fluir escuro do lixo rio abaixo, o enorme peixe-gato que passava deslizando, o brilho do sol poente na superfície da água muito acima, deixando tudo da cor de doce de leite.
Por que Poseidon me salvara? Quanto mais eu pensava nisso, mais envergonhado me sentia. Então, eu tivera sorte algumas vezes. Contra algo como a Quimera, eu não tinha a menor chance. Aquela pobre gente no Arco provavelmente virara torrada. Não consegui protegê-los. Não era nenhum herói. Talvez devesse simplesmente ficar aqui embaixo com o peixe-gato, juntar-me aos comensais do fundo do rio.
Plof-plof-plof. As pás da hélice de um barco agitaram a água sobre mim, revirando o lodo ao redor.
Ali, não mais de cinco metros à frente, estava minha espada, a guarda de bronze brilhando, espetada na lama. Ouvi aquela voz de mulher outra vez: Percy, pegue a espada. Seu pai acredita em você.
Dessa vez percebi que a voz não estava em minha cabeça. Eu não a estava imaginando. As palavras pareciam vir de toda parte, ondulando pela água como o sonar de um golfinho.
– Onde está você? – perguntei em voz alta.
Então, nas sombras, eu a vi – uma mulher da cor da água, um fantasma na corrente, flutuando logo acima da espada. Tinha longos cabelos ondulantes, e os olhos, pouco visíveis, eram verdes como os meus.
Um nó se formou em minha garganta.
– Mamãe?
Não, criança, apenas uma mensageira, embora o destino de sua mãe não seja tão inevitável como você acredita. Vá para a praia em Santa Mônica.
– O quê?
É a vontade se seu pai. Antes de descer para o Mundo Inferior, deve ir a Santa Monica. Por favor, Percy, não posso ficar muito tempo aqui. O rio é sujo demais para a minha presença.
– Mas... – Eu não sabia muito bem se a mulher era a minha mãe ou, bem, uma visão dela. – Quem... como você...
Havia muita coisa que eu queria perguntar, as palavras se amontoavam em minha garganta.
Não posso ficar, meu valente, disse a mulher. Ela estendeu a mão, e senti a corrente roçar meu rosto como uma carícia. Você precisa ir a Santa Monica! E, Percy, cuidado com os presentes...
A voz dela sumiu.
– Presentes? – perguntei. – Que presentes? Espere!
Ela tentou falar novamente, mas o som se fora. Sua imagem se desfez. Se era a minha mãe, eu a tinha perdido de novo. Senti vontade de me afogar. O único problema: eu era imune a isso.
Seu pai acredita em você, ela dissera.
Ela também me chamara de valente... a não ser que estivesse falando com o peixe-gato. Fui me arrastando até Contracorrente e a agarrei pela guarda. A Quimera ainda podia estar lá em cima com sua mãe gorda e peçonhenta, esperando para acabar comigo. Na melhor das hipóteses, a policia mortal estaria chegando, tentando descobrir quem havia aberto um buraco no Arco. Se me achassem, teriam algumas perguntas a fazer. Pus a tampa na espada e enfiei a esferográfica no bolso.
– Muito obrigado, pai – disse de novo para a água escura. Então dei um impulso para cima, através da sujeira, e nadei até a superfície.
Emergi ao lado de um McDonald’s flutuante.
A um quarteirão de distância, todos os veículos de emergência de St. Louis cercavam o Arco. Helicópteros da policia circulavam no alto. A multidão de curiosos me lembrou Times Square no dia de ano-novo.
Uma menininha disse:
– Mamãe! Aquele menino saiu andando do rio.
– Que bom, querida – disse a mãe, esticando o pescoço para ver as ambulâncias.
– Mas ele está seco!
– Que bom, querida.
Uma repórter estava falando para a câmera:
“Tudo leva a crer, pelo que soubemos, que não se trata de um ataque terrorista, mas as investigações ainda estão muito no começo. Os danos, como podem ver, são muito sérios. Estamos tentando obter acesso a alguns sobreviventes para questioná-los a respeito de testemunhos de que alguém teria caído de cima do Arco.”
Sobreviventes. Senti uma onda de alivio. O guarda e a família tinham escapado ilesos. Eu esperava que Annabeth e Grover estivessem bem.
Tentei abrir caminho na multidão para ver o que estava acontecendo depois da barreira policial.
“... um adolescente”, outro reporte estava dizendo. “O Canal 5 soube que as câmeras de vigilância mostram um adolescente enlouquecido na plataforma de observação, detonando de algum modo aquela estranha explosão. É difícil acreditar, John, mas é isso que estamos ouvindo dizer. Mais uma vez, não há nenhuma fatalidade confirmada...”
Recuei, tentando manter a cabeça baixa. Tinha de dar uma volta enorme para contornar o perímetro policial. Havia policiais e repórteres por toda parte.
Estava quase perdendo a esperança de encontrar Annabeth e Grover quando uma voz familiar baliu:
– Perrr-cy!
Virei-me e dei com o abraço de urso de Grover – ou abraço de bode. Ele disse:
– Pensamos que tivesse ido para o Hades pelo pior caminho!
Annabeth estava trás dele, tentando fazer cara de zangada, mas até ela parecia aliviada por me ver.
– Não podemos deixar você cinco minutos sozinho! O que aconteceu?
– Foi como um tombo.
– Percy! Cento e noventa e dois metros?
Atrás de nós, um policial gritou:
– Abram passagem! – A multidão se dividiu e uma dupla de paramédicos avançou empurrando uma mulher numa maca. Eu a reconheci imediatamente como a mãe do menininho que estava na plataforma. Ela dizia:
– E então aquele cachorro enorme, aquele chihuahua enorme cuspindo fogo...
– Certo, minha senhora – disse o paramédico. – Acalme-se por favor. Sua família está bem. O medicamento está começando a fazer efeito.
– Eu não estou louca! Aquele menino pulou pelo buraco e o monstro desapareceu. – Então ela me viu. – Lá está ele! É aquele menino!
Virei rapidamente e puxei Annabeth e Grover atrás de mim. Desaparecemos na multidão.
– O que está acontecendo? – perguntou Annabeth. – Ela estava falando do chihuahua do elevador?
Contei a eles a história inteira da Quimera, Equidna, meu show de mergulho e a mensagem da moça embaixo d’água.
– Uau – disse Grover. – Temos de levá-lo a Santa Monica! Não pode ignorar uma ordem de seu pai.
Antes que Annabeth pudesse responder, passamos por outro repórter que gravava um boletim informativo, e quase fiquei paralisado quando ele disse:
– Percy Jackson. É isso mesmo, Dan. O canal 12 soube que o menino que pode ter causado essa explosão se encaixa na descrição de um rapazinho procurado pelas autoridades por um serio acidente com um ônibus em New Jersey três dias atrás. E acredita-se que o menino esteja viajando para o oeste. Para os nossos espectadores de casa, esta é a foto de Percy Jackson.
Nós nos abaixamos atrás do carro de reportagem e nos esgueiramos para um beco.
– Primeiro o mais importante – disse a Grover. – Temos de sair da cidade!
De algum modo conseguimos voltar à estação ferroviária sem sermos vistos. Embarcamos no trem bem no momento em que estava saindo para Denver. O trem seguiu para oeste enquanto a noite caía, com as luzes da polícia ainda piscando contra a silhueta de St. Louis atrás de nós.
Capítulo 15 - Um deus compra cheeseburguers para nós
Na tarde seguinte, 14 de junho, sete dias antes do solstício, nosso trem entrou em Denver. Não comíamos nada desde a noite anterior no vagão-restaurante, em algum lugar de Kansas. Não tomávamos banho desde que saímos da Colina Meio-Sangue, e eu tinha certeza de que isso era óbvio.
– Vamos tentar entrar em contato com Quíron – disse Annabeth. – Quero contar a ele sobre sua conversa com o espírito do rio.
– Não podemos usar telefones, certo?
– Não estou falando de telefones.
Perambulamos pelo centro da cidade por cerca de meia hora, embora eu não soubesse muito bem o que Annabeth estava procurando. O ar estava seco e quente, o que era estranho depois da umidade de St. Louis. Aonde quer que fôssemos, as Montanhas Rochosas pareciam me olhar, como um tsunami prestes a quebrar sobre a cidade.
Finalmente encontramos um lava-jato vazio. Fomos para o boxe mais afastado da rua, atentos a carros de polícia. Éramos três adolescentes sem automóvel em um lava-jato; qualquer policial que se prezasse deduziria que não estávamos tramando nada de bom.
– O que exatamente estamos fazendo? – perguntei quando Grover pegou a mangueira de um compressor.
– São setenta e cinco centavos – resmungou. Só me restauram duas moedas de vinte e cinco. Annabeth?
– Não olhe para mim – disse ela. – O vagão-restaurante me deixou lisa.
Pesquei o meu último restinho de trocados e passei uma moeda de vinte e cinco centavos para Grover, o que me deixou com cinco e um dracma da Medusa.
– Excelente – disse Grover. – Poderíamos fazer isso com qualquer spray, é claro, mas a conexão não fica boa, e meus braços cansam de tanto bombear.
– Do que está falando?
Ele depositou as moedas e ajustou o botão para ESGUICHO FINO.
– M. I.
– Mensagem instantânea?
– Mensagem de Íris – corrigiu Annabeth. – A deusa do arco-íris transmite mensagens aos deuses. Se a gente souber como pedir, e ela não estiver atarefada demais, fará o mesmo para meios-sangues.
– Você convoca a deusa com um compressor?
Grover apontou o bico da mangueira para o ar e água saiu chiando em uma espessa névoa branca.
– A não ser que conheça um meio mais fácil de fazer um arco-íris.
De fato, a luminosidade do fim de tarde se filtrou através da névoa e se decompôs em cores.
Annabeth estendeu a palma da mão para mim.
– Dracma, por favor.
Eu o entreguei.
Ela ergueu a moeda acima da cabeça.
– Ó deusa, aceite nossa oferenda.
Jogou o dracma no arco-íris. Ele desapareceu em um tremeluzir dourado.
– Colina Meio-Sangue – solicitou Annabeth.
Por um momento, nada aconteceu. E então eu estava olhando através da névoa para campos de morangos e o Estreito de Long Island a distância. Era como se estivéssemos na varanda da Casa Grande. Em pé, de costas para nós junto à cerca, estava um cara de cabelos da cor da areia, de short e camiseta regata laranja. Segurava uma espada de bronze e parecia olhar atentamente para algo na campina.
– Luke! – chamei.
Ele se virou, os olhos arregalados. Poderia jurar que ele estava na minha frente, a um metro de distância, atrás de uma cortina de névoa,só que eu via apenas a parte dele que aparecia no arco-íris.
– Percy! – O seu rosto marcado pela cicatriz se abriu em um sorriso. – E Annabeth também? Graças aos deuses! Vocês estão bem?
– Estamos... ahn... ótimos – gaguejou Annabeth. Ela tentava desesperadamente alisar a camiseta suja e tirar os cabelos soltos da frente do rosto. – Nós pensamos... Quíron... quer dizer...
– Ele está lá embaixo nos chalés. – O sorriso de Luke se apagou. Estamos tendo alguns problemas com os campistas. Escute, está tudo legal com vocês? Grover está bem?
– Estou bem aqui – gritou Grover. Ele virou o esguicho para um lado e entrou no campo de visão de Luke. – Que tipo de problemas?
Bem naquele momento um grande Lincoln Continental entrou no lava-jato com o rádio tocando hip-hop no último volume.
Quando o carro entrou no boxe ao lado, os alto-falantes vibravam tanto que sacudiram o calçamento.
– Quíron teve de... que barulho é esse? – gritou Luke.
– Deixa que eu cuido disso! – gritou Annabeth parecendo muito aliviada por ter uma desculpa para sair de vista. – Grover, venha!
– O quê? – disse Grover. – Mas...
– Dê a mangueira a Percy e venha! – ordenou ela.
Grover resmungou qualquer coisa sobre as meninas serem mais difíceis de entender do que o Oráculo de Delfos, depois me entregou a mangueira e seguiu Annabeth.
Eu reajustei o esguicho para manter o arco-íris e ainda ver Luke.
– Quíron teve de separar uma briga – gritou Luke, mais alto que música. – A situação anda um bocado tensa por aqui. A questão-impasse entre Zeus e Poseidon vazou. Ainda não sabemos direito como... provavelmente, foi o mesmo sujeito nojento que convocou o cão infernal. Agora os campistas estão começando a tomar partido. As coisas estão ficando como na Guerra de Tróia, tudo de novo. Afrodite, Ares e Apolo estão de certo modo apoiando Poseidon. Atena está apoiando Zeus.
Estremeci só de pensar que o chalé de Clarisse pudesse estar do lado de meu pai para alguma coisa. No boxe ao lado, ouvi Annabeth e algum cara discutindo, e então o volume da música abaixou drasticamente.
– Então, qual é a sua situação? – Perguntou Luke para mim. – Quíron vai lamentar muito não ter podido falar com você.
Contei-lhe praticamente tudo, inclusive meus sonhos. Era tão boa a sensação de vê-lo, de que eu estava de volta ao acampamento, mesmo que fosse por alguns minutos, que não percebi por quanto tempo havia falado até que o alarme do compressor disparou. Vi que só tinha mais um minuto antes que a água desligasse.
– Queria poder estar aí – disse Luke. – Não podemos ajudar muito daqui, infelizmente, mas escute... com certeza foi Hades quem pegou o raio-mestre. Ele estava lá no Olimpo solstício de inverno. Eu estava supervisionando uma excursão e nós o vimos.
– Mas Quíron falou que os deuses não podem tomar diretamente os itens mágicos um do outro.
– É verdade – disse Luke, parecendo perturbado. – Ainda assim... Hades tem o elmo das trevas. Como alguém mais poderia se esgueirar para dentro da sala do trono e roubar o raio-mestre? É preciso estar invisível.
Ficamos os dois em silêncio até que Luke pareceu se dar conta do que dissera.
– Ei – protestou ele. – Não quis dizer Annabeth. Ela e eu nos conhecemos há uma eternidade. Ela jamais iria... quer dizer, ela é como uma irmã para mim.
Pensei comigo mesmo se Annabeth iria gostar daquela descrição. No boxe ao lado, a música parou. Um homem gritou aterrorizado, portas de carro bateram e o Lincoln saiu a toda do lava-jato.
– É melhor você ir ver o que foi aquilo – disse Luke. – Escute, está usando os tênis voadores? Eu me sentiria melhor se soubesse que lhe serviram de alguma coisa.
– Ah... ahn, sim! –Tentei não soar como parecer um mentiroso culpado. – Sim, foram úteis.
– É mesmo? – Sorriu. – Serviram e tudo o mais?
A água cessou. A névoa começou a dispersar.
– Bem, cuide-se lá em Denver – gritou Luke, a voz ficando mais baixa. – E diga a Grover que dessa vez será melhor! Ninguém será transformado em pinheiro se ele apenas...
Mas a névoa se foi, e a imagem de Luke desapareceu. Eu estava sozinho em um boxe molhado e vazio de lava-jato.
Annabeth e Grover apareceram no canto, rindo, mas pararam quando viram minha cara.
O sorriso de Annabeth sumiu.
– O que aconteceu, Percy? O que Luke disse?
– Quase nada – menti, sentindo o estômago tão vazio quanto um chalé dos Três Grandes. – Venham, vamos procurar alguma coisa para jantar.
Poucos minutos depois, estávamos sentados num reservado de um pequeno e reluzente restaurante todo cromado. À nossa volta, famílias comiam hambúrgueres e bebiam cerveja e refrigerantes. Finalmente, a garçonete veio. Ela ergueu uma sobrancelha com um ar cético.
– Então?
Eu disse:
– Nós, ahn, queremos pedir o jantar.
– Têm dinheiro para pagar, crianças?
O lábio inferior de Grover tremeu. Tive medo de que ele começasse a balir, ou, pior, começasse a comer o linóleo. Annabeth parecia prestes a desmaiar de fome.
Eu estava tentando pensar em uma história comovente para a garçonete quando um forte ronco sacudiu o edifício inteiro; uma motocicleta do tamanho de um filhote de elefante havia encostado no meio-fio.
Todas as conversas cessaram. O farol da motocicleta brilhava em vermelho. Tinha labaredas pintadas sobre o tanque de gasolina e um coldre de cada lado, com espingardas de caça. O assento era de couro — mas um couro que parecia... bem, pele humana, caucasiana.
O cara da moto podia fazer lutadores profissionais saírem correndo chamando a mamãe. Vestia uma camiseta justa vermelha, que ressaltava os músculos, jeans pretos e um casaco comprido de couro preto, com um facão de caça preso à coxa. Usava óculos escuros vermelhos, presos na nuca, e tinha a cara mais cruel, mais brutal que eu já tinha visto – boa-pinta, eu acho, porém mau, com cabelo negro como petróleo aparado a máquina, o rosto marcado por cicatrizes de muitas, muitas brigas. O estranho era que parecia que eu já tinha visto aquele homem em algum lugar.
Quando ele entrou no restaurante, um vento quente e seco soprou no ambiente. Todos se levantaram, como se estivessem hipnotizados, mas o motociclista acenou a mão com desdém e eles sentaram de novo. Todos voltaram às suas conversas. A garçonete piscou, como se alguém tivesse apertado o botão de retroceder em seu cérebro. Ela perguntou novamente:
– Têm dinheiro para pagar, crianças?
O cara da moto disse:
– É por minha conta. – Escorregou para dentro do nosso reservado, pequeno demais para ele, e espremeu Annabeth contra janela.
Encarou a garçonete, que olhava para ele de olhos arregalados, e disse:
– Ainda está aí?
Ele apontou para ela, e ela ficou rígida. Virou-se como se alguém a tivesse girado e marchou de volta para a cozinha.
O homem da moto me olhou. Não pude ver seus olhos atrás dos óculos vermelhos, mas sentimentos ruins começaram a fervilhar no meu estômago. Raiva, ressentimento, amargor. Tive vontade de bater na parede. Tive vontade de comprar briga com alguém. Quem aquele cara pensava que era?
Ele me deu um sorriso maldoso.
– Então você é o garoto do Velho das Algas, ahn?
Eu devia ter ficado surpreso, ou assustado, mas em vez disso era como se estivesse olhando para o meu padrasto, Gabe. Quis arrancar a cabeça do cara:
– O que você tem com isso?
Os olhos de Annabeth me lançaram um alerta.
– Percy, este é...
– Tudo bem – disse ele. – Não me incomodo com um pouco de petulância. Desde que você lembre quem manda. Sabe quem eu sou, priminho?
Então me veio à cabeça por que o cara me parecia familiar. Ele tinha o mesmo olhar cruel de algumas crianças do Acampamento Meio-Sangue, os do chalé 5.
– Você é o pai de Clarisse – disse eu. – Ares, deus da guerra.
Ares arreganhou um sorriso e tirou os óculos. Onde deveriam estar os olhos havia apenas fogo, órbitas vazias brilhando com miniexplosões nucleares.
– Certo, mané. Ouvi que quebrou a lança de Clarisse.
– Ela estava pedindo isso.
– Provavelmente. Tranquilo. Não me meto nas brigas dos meus filhos, sabia? Estou aqui porque ouvi dizer que estava na cidade. Tenho uma pequena proposta para você.
A garçonete voltou trazendo bandejas com montes de comida – cheeseburguers, batatas fritas, anéis de cebola empanados e milk-shakes de chocolate.
Ares entregou-lhe alguns dracmas de ouro.
Ela olhou nervosa para as moedas.
– Mas estas não são...
Ares puxou seu enorme facão e começou a limpar as unhas.
– Algum problema, benzinho?
A garçonete engoliu em seco e se afastou com o ouro.
– Não pode fazer isso – disse a Ares. – Não pode ameaçar pessoas com uma faca.
Ares riu.
– Está brincando? Eu adoro este país. Melhor lugar, depois de Esparta. Você não anda armado, otário? Pois devia. O mundo lá fora é perigoso. O que me traz de volta à minha proposta. Preciso que me faça um favor.
– Que favor eu poderia fazer para um deus?
– Algo que um deus não tem tempo de fazer ele mesmo. Nada demais. Larguei meu escudo em um parque aquático abandonado aqui na cidade. Estava no meio de um... encontro com minha namorada. Fomos interrompidos. Deixei o escudo para trás. Quero que vá buscá-lo para mim.
– Por que não volta lá e pega você mesmo?
O fogo nas órbitas dele ficou um pouco mais incandescente.
– Por que não transformo você em uma marmota e o atropelo com minha Harley? Porque não estou com vontade. Um deus está dando a você a oportunidade de se pôr à prova, Percy Jackson. Você vai mostrar que é um covarde? – Ele se inclinou para a frente. – Ou, quem sabe, você só luta quando há um rio para mergulhar dentro, para que seu papai possa protegê-lo?
Queria dar um murro naquele cara, mas, de algum modo, sabia que ele esperava por isso. O poder de Ares estava causando a minha raiva. Ele adoraria se eu o atacasse. Eu não queria lhe dar esse gostinho.
– Não estamos interessados – falei. – Já temos uma missão.
Os olhos ardentes de Ares me fizeram ver coisas que eu não queria – sangue, fumaça e corpos no campo de batalha.
– Eu sei de tudo sobre sua missão, seu imprestável. Quando aquele item foi roubado, Zeus enviou seus melhores para procurá-lo: Apolo, Atena, Ártemis e, naturalmente, eu. Se eu não consegui farejar uma arma tão poderosa... – Ele lambeu o beiço, como se a própria ideia do raio-mestre o tivesse deixado com fome. – Bem... se eu não consegui encontrá-lo, você não tem nenhuma chance. Entretanto, estou tentando lhe dar o beneficio da dúvida. Seu pai e eu nos conhecemos há muito tempo. Afinal, fui eu quem lhe contou minhas suspeitas sobre o velho Bafo de Cadáver.
– Você disse a ele que Hades roubou o raio?
– Claro. Acirrar os ânimos para uma guerra. O truque mais antigo de todos. Eu o reconheci imediatamente. De certo modo, você tem de agradecer a mim por sua missãozinha.
– Obrigado – resmunguei.
– Ei, sou um cara generoso. Faça meu servicinho e eu o ajudarei em sua viagem. Vou arranjar uma carona para oeste para você e seus amigos.
– Estamos indo muito bem sozinhos.
– Sim, certo. Sem dinheiro. Sem rodas. Sem nenhuma pista do que vão enfrentar. Ajude-me, e talvez eu lhe conte algo sobre que precisa saber. Algo sobre a sua mãe.
– Minha mãe?
Ele sorriu.
– Isso despertou sua atenção. O parque aquático fica um quilômetro e meio a oeste, na Delancy. Não há como errar. Procurem o Túnel do Amor.
– O que interrompeu seu namoro? – perguntei. – Alguma coisa o assustou?
Ares arreganhou os dentes, mas eu já tinha visto aquela cara ameaçadora antes, em Clarisse. Havia nela algo de incerto, quase um nervosismo.
– Você tem sorte de ter me encontrado, imprestável, e não um dos olimpianos. Eles não são tão indulgentes com a grosseria quanto eu. Encontrarei você aqui novamente quando tiver terminado. Não me desaponte.
Depois disso eu devo ter desmaiado, ou entrado em um transe, pois quando voltei a abrir os olhos Ares havia desaparecido. Podia ter pensado que toda a conversa fora um sonho, mas a expressão de Annabeth e Grover me dizia outra coisa.
– Nada bom – disse Grover. – Ares o procurou, Percy. Isso não é nada bom.
Olhei pela janela. A motocicleta havia desaparecido.
Será que Ares realmente sabia algo sobre minha mãe, ou estava apenas jogando comigo? Agora que ele se fora, toda a minha raiva passara. Percebi que Ares devia adorar bagunçar as emoções das pessoas. Era esse o seu poder – exacerbar tanto as paixões que elas atrapalhavam nossa capacidade de pensar.
– Deve ser algum tipo de truque – falei. – Esqueçam Ares. Vamos embora e pronto.
– Não podemos – disse Annabeth. – Olhe, detesto Ares tanto quanto qualquer um, mas não é possível ignorar os deuses a não ser que se deseje um azar tremendo. Ele não estava brincando sobre transformar você em um roedor.
Baixei os olhos para meu cheeseburguer, que de repente não parecia mais tão apetitoso.
– Por que ele precisa de nós?
– Talvez seja um problema que requeira inteligência – disse Annabeth. – Ares tem força. É tudo o que tem. Mesmo às vezes tem de se curvar à sabedoria.
– Mas esse parque aquático... ele agiu quase como se estivesse apavorado. O que faria um deus da guerra fugir desse jeito?
Annabeth e Grover se entreolharam nervosamente.
Annabeth disse:
– Acho que teremos de descobrir.
Quando encontramos o parque aquático, o sol estava se pondo atrás das montanhas. A julgar pela placa, ele outrora se chamara AQUALÂNDIA,mas agora algumas letras haviam sido arranca, então ela dizia AQU L D A.
O portão principal estava fechado com cadeado e tinha no alto arame farpado. Dentro, enormes escorregadores, tubos e canos se retorciam por toda parte, secos, desembocando em piscinas vazias. Velhos ingressos e folhetos subiam do asfalto com o vento. Com a noite chegando, o lugar parecia triste e arrepiante.
– Se Ares traz a namorada aqui para um encontro – falei, olhando para o arame farpado – não ia gostar de ver com aparência dela.
– Percy – advertiu Annabeth – tenha mais respeito.
– Por quê? Pensei que você detestasse Ares.
– Ainda assim, ele é um deus. E a namorada dele é muito temperamental.
– Não queremos ofendê-la – acrescentou Grover.
– Quem é? Equidna?
– Não, Afrodite – disse Grover, um pouco sonhador. – A deusa do amor.
– Pensei que ela fosse casada com alguém – disse eu. – Hefesto.
– E daí? – perguntou ele.
– Ah. – De repente, senti que era preciso mudar de assunto. – Então, como fazemos para entrar?
– Maia! — Os tênis de Grover criaram asas.
Ele voou por cima da cerca, deu um mortal involuntário no ar, depois pousou cambaleando no lado oposto. Sacudiu o pó dos seus jeans, como se tivesse planejado tudo aquilo.
– Vocês vêm?
Annabeth e eu tivemos de escalar à moda antiga, empurrando o arame farpado um para o outro enquanto nos arrastávamos por cima do topo.
As sombras se alongaram enquanto caminhávamos pelo parque, conferindo as atrações. Havia a Ilha dos Pequeninos, o Por cima da Cabeça e o Cara, Cadê o Meu Calção? Nenhum monstro chegou para nos pegar. Nada fazia o menor barulho.
Encontramos uma loja de lembrancinhas que fora deixada aberta. Ainda haviam mercadorias enfileiradas nas prateleiras: globos de neve, lápis, cartões-postais, e prateleiras de...
– Roupas – disse Annabeth. – Roupas limpas.
– É — completei. – Mas você não pode simplesmente...
– Observe.
Ela agarrou uma fileira inteira de artigos das prateleiras e desapareceu dentro do provador. Poucos minutos depois saiu vestindo short estampado de flores da Aqualândia, uma grande camiseta vermelha da Aqualândia e sapatilhas de surfe temáticas da Aqualândia. Pendurada no ombro, uma mochila da Aqualândia, obviamente recheada de outras coisinhas.
– Ora, que se dane. – Grover encolheu os ombros.
Logo nós três parecíamos anúncios ambulantes do parque temático fantasma.
Continuamos procurando pelo Túnel do Amor. Eu tinha a sensação de que o parque inteiro estava prendendo a respiração.
– Então Ares e Afrodite – falei, só para afastar os pensamentos da escuridão que aumentava – estão tendo um caso?
– É uma fofoca velha, Percy – disse Annabeth – fofoca de três mil anos.
– E o marido de Afrodite?
– Bem, você sabe – disse ela. – Hefesto. O ferreiro ficou aleijado quando bebê, atirado de cima do Monte Olimpo por Zeus. Então não é exatamente lindo. Habilidoso com as mãos e tudo, mas Afrodite não curte inteligência e talento, entende?
– Ela gosta de motoqueiros.
– Ou isso.
– Hefesto sabe?
– Ah, com certeza – disse Annabeth. – Uma vez ele os pegou juntos. Quer dizer, pegou mesmo, em uma rede de ouro, e chamou todos os deuses para ver e rir da cara deles. Hefesto está sempre tentando constrangê-los. É por isso que eles se encontram em lugares escondidos, como...
Ela se interrompeu, olhando em frente.
– Como aquilo.
Diante de nós havia uma piscina vazia que teria sido sensacional para andar de skate. Tinha pelo menos cinquenta metros de largura e forma de bacia.
Em volta da beira, uma dúzia de estátuas de Cupido montavam guarda de asas abertas e arcos prontos para disparar. Do outro lado abria-se um túnel, provavelmente para onde a água escoava quando a piscina estava cheia. A placa acima dele dizia: EMOCIONANTE PASSEIO DE AMOR: ESTE NÃO É O TÚNEL DO AMOR DOS SEUS PAIS!
Grover se arrastou até a borda.
– Gente, olhe.
Abandonado no fundo da piscina havia um barco de dois lugares rosa e branco, com coraçõezinhos pintados por toda parte. No assento da esquerda, brilhando na luz pálida, estava o escudo de Ares, um círculo polido de bronze.
– Fácil demais – disse eu. – Então é só descer até lá e pegá-lo?
Annabeth correu os dedos pela base da estátua de Cupido mais próxima.
– Há uma letra grega entalhada aqui – disse ela. – Eta. Imagino...
– Grover – falei – sente cheiro de algum monstro?
Ele farejou o vento.
– Nada.
– Nada do tipo no-Arco-você-não-sentiu-o-cheiro-de-Equidna ou realmente nada?
Grover pareceu ofendido.
– Disse a você, aquilo foi num subterrâneo.
– Certo, desculpe. – Eu respirei fundo. – Vou descer até lá.
– Vou com você. – Grover não pareceu muito entusiasmado, mas tive a impressão de que ele estava tentando compensar pelo que acontecera em St. Louis.
– Não – disse a ele. – Quero que fique no alto com os tênis voadores. Você é nosso ás da aviação, está lembrado? Vou contar com você para dar apoio, caso alguma coisa dê errado.
Grover estufou um pouco o peito.
– Claro. Mas o que poderia dar errado?
– Não sei. Só uma sensação. Annabeth, venha comigo...
– Está brincando? – Ela olhou para mim como se eu tivesse acabado de cair da Lua.
Suas bochechas estavam num tom vermelho vivo.
– Qual o problema agora? – perguntei.
– Eu... ir com você para um... um "Emocionante Passeio de Amor"? Que coisa mais embaraçosa! E se alguém me vir?
– Quem é que vai ver? – Mas agora a minha cara também estava queimando. Só mesmo uma menina para complicar as coisas. – Ótimo – disse a ela. – Vou fazer isso sozinho, quando comecei a descer pela lateral da piscina, ela me seguiu resmungando sobre como os meninos sempre complicam as coisas.
Chegamos ao barco. O escudo estava apoiado em um banco e ao lado havia um lenço feminino de seda. Tentei imaginar Afrodite ali, um casal de deuses se encontrando em um brinquedo de parque de diversões sucateado. Por quê? Então notei algo não tinha visto de cima: espelhos por toda a volta da borda da piscina, voltados para aquele ponto.
Podíamos nos ver, não importa em que direção olhássemos. Tinha de ser isso. Enquanto Ares e Afrodite estavam se agarrando, podiam ver suas pessoas favoritas: eles mesmos. Peguei o lenço. Tinha um brilho rosado, e o perfume indescritível — rosas, ou louro. Alguma coisa boa. Sorri, um sonhador, e estava quase passando o lenço no rosto quando Annabeth o arrancou da minha mão e enfiou em seu bolso.
– Ah, não, não faça isso. Fique longe dessa magia de amor.
– O quê?
– Apenas pegue o escudo, Cabeça de Alga, e vamos dar o fora daqui.
No momento em que toquei o escudo, vi que estávamos encrencados. Minha mão arrebentou algo que o conectava ao para-brisa. Uma teia de aranha, pensei, mas então olhei para um fio invisível na minha palma e vi que era algum tipo de filamento metálico, tão fino que era quase invisível. Uma armadilha.
– Espere – disse Annabeth.
– Tarde demais.
– Há uma outra letra grega na lateral do barco, um outro eta. Trata-se de uma armadilha.
Um ruído irrompeu a nossa volta, um milhão de engrenagens rangendo, como se a piscina inteira estivesse se transformando em uma máquina gigante.
Grover gritou:
– Gente!
Lá em cima na borda, as estátuas de Cupido armavam os arcos, antes que eu pudesse sugerir que nos abaixássemos, dispararam, mas não contra nós. Dispararam uma contra a outra, atravessando a piscina. Cabos de seda foram levados pelas flechas, fazendo um arco por cima da piscina e fincando-se no chão para formar um imenso asterisco dourado. Então fios metálicos menores começaram a se tecer magicamente por entre os principais, formando uma rede.
– Temos de dar o fora – disse eu.
– Ah, é mesmo? – disse Annabeth.
Agarrei o escudo e corremos, mas subir pela inclinação da piscina não era tão fácil quanto descer.
– Venham! – gritou Grover.
Ele estava tentando manter uma seção da rede aberta para nós, mas onde quer que a tocasse, os fios dourados começavam a envolver suas mãos.
A cabeça dos Cupidos se abriu de repente. De lá, saíram câmeras de vídeo. Luzes se ergueram por toda a volta da piscina, cegando-nos com a claridade, e um alto-falante soou:
– Ao vivo para o Olimpo em um minuto... Cinquenta e nove segundos, cinquenta e oito...
– Hefesto! – gritou Annabeth. – Como eu sou estúpida! Eta é “H”. Ele fez essa armadilha para pegar a mulher dele com Ares. Agora vamos ser transmitidos ao vivo para o Olimpo e parecer completos idiotas!
Estávamos quase conseguindo chegar à borda quando a fileira de espelhos se abriu como escotilhas e milhares de... coisinhas metálicas jorraram para fora.
Annabeth gritou.
Era um exército de bichos rastejantes de corda: corpo de engrenagens de bronze, pernas compridas e finas, bocas em pequenas pinças, todos correndo em nossa direção em uma onda de estalando e zumbindo.
– Aranhas! – disse Annabeth. – Ar... ar... aaaaaaaah!
Eu nunca a tinha visto daquele jeito. Ela caiu para trás, aterrorizada e quase se rendeu às aranhas-robôs antes que eu a puxasse para cima e a arrastasse de volta em direção ao barco.
Aquelas coisas vinham de todos os lados, milhões delas, inundando o centro da piscina, cercando-nos completamente. Disse a mim mesmo que não estavam programadas para matar, apenas para nos encurralar, nos morder e nos fazer parecer idiotas. Mas, por outro lado, era uma armadilha para deuses. E não éramos deuses.
Annabeth e eu subimos para dentro do barco. Comecei a chutar as aranhas para longe quando se acumulavam a bordo. Gritei para Annabeth me ajudar, mas ela estava paralisada demais para fazer qualquer coisa além de gritar.
– Trinta, vinte e nove – anunciou o alto-falante.
As aranhas começaram a cuspir fios de metal, tentando nos amarrar. De início os fios eram fáceis de romper, mas havia muitos deles, e as aranhas simplesmente continuavam a chegar. Tirei uma da perna de Annabeth com um chute, e suas pinças arrancaram um pedaço da minha nova sapatilha de surfista.
Grover pairava acima da piscina com seus tênis voadores, tentando soltar a rede, mas ela não cedia.
Pense, disse a mim mesmo, pense.
A entrada para o Túnel do Amor ficava embaixo da rede. Podíamos usá-la como saída, mas estava bloqueada por um milhão de aranhas-robôs.
– Quinze, catorze – anunciou o alto-falante. Água, pensei. De onde vem a água para o passeio?
Então vi: enormes canos atrás dos espelhos, de onde tinham vindo as aranhas. E acima da rede, perto de um dos Cupidos, uma cabine com janelas de vidro que devia ser a estação de controle.
– Grover! – gritei. – Entre naquela cabine! Encontre o botão de ligar!
– Mas...
– Faça isso! – Era uma esperança louca, mas era a nossa única chance. As aranhas já estavam por toda a proa do barco, Annabeth gritava sem parar. Eu tinha de nos tirar dali.
Grover estava agora na cabine de controle, malhando os botões.
– Cinco, quatro...
Ele olhou para mim desamparado, erguendo as mãos. Estava sinalizando que já tinha apertado todos os botões, mas nada acontecia.
Fechei os olhos e pensei em ondas, água correndo, no Mississipi. Senti um aperto familiar na garganta. Tentei imaginar que estava arrastando o oceano até Denver.
– Dois, um, zero!
A água explodiu para fora dos canos. Entrou rugindo na piscina, varrendo as aranhas para longe. Puxei Annabeth para ao lado do meu e prendi seu cinto de segurança bem quando a onda gigante atingiu o barco, de cima, expulsando as aranhas e nos encharcando completamente, mas sem virar o barco. Ele girou, erguido pela inundação, e circulou no redemoinho.
A água estava cheia de aranhas em curto-circuito, algumas colidindo contra a parede de concreto da piscina com tamanha força que explodiam.
As luzes brilharam sobre nós. As câmeras dos Cupidos estavam transmitindo ao vivo para o Olimpo.
Mas eu só podia me concentrar em controlar o barco. Desejei que ele seguisse a corrente, que ficasse afastado da parede. Talvez fosse minha imaginação, mas o barco pareceu reagir. Pelo menos não se quebrou em um milhão de pedaços. Circulamos uma última vez, e o nível da água já era quase suficiente para nos retalhar contra a rede de metal. Então o nariz do barco se virou para o túnel e disparamos como um foguete para dentro das trevas.
Annabeth e eu nos seguramos com força, os dois gritando quanto o barco se atirava em curvas e rodeava cantos e dava mergulhos de quarenta e cinco graus, passando por figuras de Romeu e Julieta e montes de outras bugigangas de Dia dos Namorados. Então estávamos fora do túnel, o ar da noite assobiando em nossos cabelos enquanto o barco seguia em alta velocidade para a saída.
Se o brinquedo estivesse em perfeito funcionamento, teríamos navegado por uma rampa entre os Portões Dourados do Amor e caído em segurança na piscina de saída. Mas havia um problema. Os Portões do Amor estavam fechados com correntes. Dois barcos que haviam sido arrastados para fora do túnel antes de nós estavam empilhados contra a barricada – um submerso e o outro partido ao meio.
– Solte seu cinto de segurança – gritei para Annabeth.
– Está maluco?
– A não ser que queira morrer esmagada. – Prendi o escudo de Ares no braço. – Vamos ter de pular.
Minha ideia era simples e insana. Quando o barco colidisse, íamos usar a força do impacto como um trampolim para pular por cima do portão. Ouvi falar de pessoas que sobreviveram a desastres de automóvel desse jeito, lançadas a dez ou vinte metros de distância do acidente. Com sorte, cairíamos na piscina.
Annabeth pareceu entender. Ela apertou minha mão quando os portões se aproximaram.
– Quando eu der o sinal – falei.
– Não! Quando eu der o sinal – corrigiu ela.
– O quê?
– Física básica! – gritou ela. – A força multiplicada pelo ângulo da trajetória...
– Está bem! – gritei. – Quando você der o sinal!
Ela hesitou... hesitou... e então gritou:
– Agora!
Crack!
Annabeth estava certa. Se tivéssemos pulado quando eu achava devíamos, teríamos nos arrebentado contra os portões. Ela conseguiu o máximo de impulso.
Por azar, foi um pouco maior do que precisávamos. Nosso barco foi atirado na pilha e fomos lançados para o ar, por cima do portão, por cima da piscina, e na direção do asfalto duro.
Alguma coisa me segurou por trás.
Annabeth gritou:
– Aaai!
Grover!
Em pleno ar, ele tinha me agarrado pela camisa, e agarrado Annabeth pelo braço, e tentava impedir que nos arrebentássemos no chão, mas Annabeth e eu ainda estávamos com toda a energia do impulso.
– Vocês são pesados demais! – disse Grover. – Estamos caindo!
Descemos em espiral, com Grover fazendo o que podia para reduzir a velocidade da queda.
Batemos contra um painel de fotografia. A cabeça de Grover entrou bem no buraco onde os turistas enfiavam a cara, fingindo ser Nu-Nu, a Baleia Camarada. Annabeth e eu desmoronam no chão, machucados, porém vivos. O escudo de Ares ainda preso ao meu braço.
Depois que recuperamos o fôlego, Annabeth e eu tiramos Grover do painel e o agradecemos por salvar nossa vida. Olhei para o Emocionante Passeio de Amor atrás de nós. A água estava baixando. Nosso barco em pedaços, esmagado contra os portões. A cem metros, na piscina de entrada do túnel, os Cupidos ainda filmavam. As estátuas tinham se virado de modo que as câmeras estavam apontadas para nós, os holofotes em nossos rostos.
– Acabou o show! – gritei. – Obrigado! Boa noite!
Os Cupidos voltaram às posições originais. As luzes se apagaram. O parque ficou novamente em silêncio e no escuro, a não ser pelo brilho fraco da água na piscina da saída do Emocionante Passeio de Amor. Imaginei se o Olimpo estaria em um intervalo comercial, e se nossos índices de audiência haviam sido bons.
Eu detestava ser provocado. Detestava ser enganado. E tinha vasta experiência de lidar com valentões que gostavam de fazer isso comigo. Levantei o escudo em meu braço e me virei para os meus amigos.
– Precisamos ter uma conversinha com Ares.
Capítulo 16 - A ida de uma zebra para Las Vegas
O deus da guerra nos esperava no estacionamento do restaurante.
– Bem, bem – disse ele. – Você conseguiu não ser morto.
– Você sabia que era uma armadilha – retruquei.
Ares me deu um sorriso malvado.
– Aposto que aquele ferreiro aleijado ficou surpreso quando pegou na rede um par de crianças estúpidas. Você ficou bem na tevê.
Empurrei o escudo para ele.
– Você é um imbecil.
Annabeth e Grover pararam de respirar.
Ares agarrou o escudo e o girou no ar como massa de pizza. O escudo mudou de forma, transformando-se em um colete à prova de balas. Ele o pendurou nas costas.
– Estão vendo aquele caminhão logo ali? – Apontou um caminhão de dezoito rodas estacionado do outro lado da rua. – É a carona de vocês. Vai levá-los direto a Los Angeles, com uma parada em Vegas.
O caminhão tinha uma placa na parte de trás, que eu só pude ler porque estava pintada ao contrário, em branco sobre preto, uma boa combinação para a dislexia: CARIDADE INTERNACIONAL: TRANSPORTE HUMANITÁRIO DE ZOOLÓGICO. CUIDADO: ANIMAIS SELVAGENS VIVOS
Eu disse:
– Fala sério!
Ares estalou os dedos. A porta traseira do caminhão se destrancou.
– Carona grátis para oeste, imprestável. Pare de reclamar. E aqui está uma coisinha por ter feito o serviço.
Ele suspendeu uma mochila de náilon azul do seu guidom e a jogou para mim.
Dentro havia roupas limpas para todos nós, vinte dólares em dinheiro, uma bolsa cheia de dracmas de ouro e uma embalagem de biscoito Oreo recheado.
Eu disse:
– Não quero a porcaria do seu...
– Obrigado, Senhor Ares – interrompeu Grover, me fuzilando com seu melhor olhar de alerta vermelho. – Muito obrigado.
Rangi os dentes. Devia ser um insulto mortal recusar algo de um deus, mas eu não queria nada que Ares tivesse tocado. Pendurei a mochila no ombro relutante. Sabia que minha raiva era causada pela presença do deus da guerra, mas ainda sentia uma vontadezinha de lhe dar um murro no nariz. Ele me lembrou de todos os valentões que já havia enfrentado: Nancy Bobofit, Clarisse, Gabe Cheiroso, professores debochados – todos os imbecis que me chamaram de estúpido na escola ou riram de mim quando fui expulso.
Olhei para o restaurante atrás de mim, que tinha agora apenas um ou dois clientes. A garçonete que nos servira o jantar olhava, nervosa, pela janela, como se tivesse medo de que Ares nos machucasse. Ela arrastou o cozinheiro de dentro da cozinha para ver. Disse algo a ele. Ele assentiu, ergueu uma pequena câmera descartável e tirou uma foto de nós.
Boa, pensei. Amanhã vamos estar de novo nos jornais.
Imaginei a manchete: CRIMINOSO DE DOZE ANOS ESPANCA MOTOCICLISTA INDEFESO.
– Você me deve mais uma coisa – disse a Ares, tentando manter o volume de minha voz. – Você me prometeu informações sobre minha mãe.
– Tem certeza de que é capaz de suportar a notícia? – Ele deu a partida no pedal da moto. – Ela não está morta.
O chão pareceu girar embaixo de mim.
– O que quer dizer?
– Quero dizer que ela foi levada pelo Minotauro antes de morrer. Foi transformada em uma chuva de ouro, certo? Isso é metamorfose. Não morte. Ela está sendo mantida presa.
– Presa. Por quê?
– Você precisa estudar guerra, coisinha imprestável. Reféns. Você prende alguém para controlar outro alguém.
– Ninguém está me controlando.
Ele riu.
– Ah, não? A gente se vê por aí, garoto.
Cerrei os punhos.
– Você é bem convencido, Senhor Ares, para um cara que foge de estátuas de Cupido.
Atrás dos óculos escuros, o fogo brilhou. Senti um vento quente nos cabelos.
– Nós nos encontraremos novamente, Percy Jackson. Na próxima vez em que estiver numa briga, cuide de sua retaguarda.
– Isso não foi muito inteligente, Percy.
– Não estou nem aí.
– Você não quer um deus como inimigo. Especialmente esse deus.
– Ei, gente – disse Grover. – Detesto interromper, mas...
Ele apontou na direção do restaurante. No caixa, os dois últimos clientes estavam pagando suas contas, dois homens de macacões pretos idênticos, com uma logomarca branca nas costas que combinava com a do caminhão da CARIDADE INTERNACIONAL.
– Se vamos pegar o expresso do zoológico – disse Grover – precisamos nos
apressar.
Eu não tinha gostado daquilo, mas não havia opção melhor. Além disso, já tinha visto o suficiente de Denver.
Atravessamos a rua correndo e subimos na traseira do veículo enorme, fechando as portas atrás de nós.
A primeira coisa que percebi foi o cheiro. Era como a maior caixa de areia para cocô de gato do mundo. O interior da carreta estava escuro até eu tirar a tampa de Anaklusmos. A lâmina lançou uma leve luz de bronze sobre uma cena muito triste. Em uma fileira de jaulas metálicas imundas havia três dos mais patéticos animais de zoológico que eu já vira: uma zebra, um leão albino e um tipo estranho de antílope, cujo o nome eu não sabia.
Alguém jogara para o leão um saco de nabos que ele obviamente não queria comer. A zebra e o antílope tinham ganhado uma bandeja de isopor de carne de hambúrguer cada um. A crina da zebra estava toda emaranhada em goma de mascar, como se alguém ficasse cuspindo nela nas horas vagas. O antílope tinha um estúpido balão de aniversário amarrado em um dos seus chifres que dizia PASSEI DA IDADE!
Tudo indicava que ninguém quisera chegar perto o bastante do leão para mexer com ele, mas o pobre andava de um lado para outro em cima de cobertores sujos, em um espaço que era mais do que muito pequeno para ele, arfando com o ar abafado da carreta.
Moscas zumbiam em volta de seus olhos cor-de-rosa, e as costelas apareciam no pelo branco.
– Isso é caridade? – gritou Grover. – Transporte humanitário de zoológico?
Ele provavelmente teria saído de volta para bater nos caminhoneiros com suas flautas de bambu, e eu o teria ajudado, mas bem naquele momento o motor roncou, a carreta começou a chacoalhar e fomos forçados a nos sentar ou cair.
Nós nos amontoamos no canto em cima de alguns sacos de ração embolorados, tentando ignorar o cheiro, o calor e as moscas. Grover falou com os animais em uma série de balidos de bode, mas eles apenas olharam tristemente para ele. Annabeth era a favor de arrombar as jaulas e soltá-los ali mesmo, mas argumentei que isso não ia adiantar muito até o caminhão parar de se mover. Além disso, tinha a sensação de que, para o leão, poderíamos parecer bem mais apetitosos do que aqueles nabos.
Achei um jarro de água e reabasteci as tigelas deles, depois usei Anaklusmos para puxar os alimentos trocados para fora das jaulas. Dei a carne ao leão e os nabos para a zebra e o antílope.
Grover acalmou o antílope enquanto Annabeth usava sua faca para tirar o balão preso ao chifre. Pensou também em cortar a goma de mascar da crina da zebra, mas concluímos que seria muito arriscado com o caminhão aos solavancos. Pedimos a Grover para prometer aos animais que os ajudaríamos mais pela manhã, e então nos acomodamos para a noite.
Grover se enrodilhou sobre um saco de nabos; Annabeth abriu nosso pacote de Oreos e mordiscou um deles sem muito entusiasmo, tentei ficar animado com a ideia de que estávamos a meio caminho de Los Angeles. Próximo de nosso destino. Ainda era 14 de junho. O solstício só aconteceria no dia 21. Tínhamos tempo de sobra.
Por outro lado, não tinha ideia do que nos esperava. Os deuses estavam brincando comigo. Pelo menos Hefesto teve a decência de ser honesto quanto a isso – instalou câmeras e me anunciou como entretenimento. Mas até quando não havia câmeras filmando eu tinha a sensação de que a minha missão estava sendo observada. Eu era uma fonte de diversão para os deuses.
– Ei – disse Annabeth. – Sinto muito por ter me apavorado lá no parque aquático, Percy.
– Tudo bem.
– É só que... – Ela estremeceu. – Aranhas.
– Por causa da história de Aracne – adivinhei. – Ela foi transformada em aranha por desafiar sua mãe para uma competição de tecelagem, certo?
Annabeth assentiu.
– Os filhos de Aracne têm se vingado nos filhos de Atena desde então. Se houver uma aranha a um quilômetro de distância de mim, ela me encontrará. Eu odeio aquelas coisinhas rastejantes. De qualquer jeito, lhe devo uma.
– Somos uma equipe, está lembrada? Além disso, Grover fez aquele voo fantástico.
Pensei que estivesse dormindo, mas ele murmurou do seu canto:
– Fui o máximo, não fui?
Annabeth e eu demos risada.
Ela separou as duas partes do biscoito recheado e me deu uma.
– Na mensagem de Íris... Luke realmente não disse nada?
Mastiguei meu biscoito e pensei em como responder. A conversa via arco-íris me incomodara a noite toda.
– Luke disse que você e ele se conhecem há muito. Também disse que Grover não iria fracassar dessa vez. Ninguém seria transformado em pinheiro.
Na pálida luz de bronze da lâmina da espada, era difícil ler a expressão deles.
Grover soltou um balido lamentoso.
– Eu devia ter contado a verdade a você desde o começo. – Sua voz tremia. – Pensei que, se soubesse o fracasso que eu era, não iria querer que eu viesse junto.
– Você era o sátiro que tentou salvar Thalia, a filha de Zeus.
Ele assentiu, com tristeza.
– E os outros dois meios-sangues que Thalia protegeu, os que chegaram ao acampamento em segurança... – Olhei para Annabeth. – Eram você e Luke, não é?
Ela pôs seu biscoito de lado, intocado.
– Como você disse, Percy, uma meio-sangue de sete anos de idade não teria chegado muito longe sozinha. Atena me guiou até a ajuda. Thalia tinha doze anos. Luke, catorze. Os dois haviam fugido de casa, como eu. Ficaram contentes em me levar com eles. Eram... fantásticos combatentes de monstros, mesmo sem treino. Viajamos da Virgínia para o norte sem nenhum plano de verdade, nos defendemos dos monstros por cerca de duas semanas antes de Grover nos encontrar.
– Eu devia escoltar Thalia até o acampamento – disse ele, fungando – somente Thalia. Tinha ordens estritas de Quíron: não faça nada que atrase o resgate. Sabíamos que Hades estava atrás dela, entende, mas eu não podia simplesmente abandonar Luke e Annabeth. Achei... achei que conseguiria levar todos os três até um lugar seguro. Foi minha culpa as Benevolentes nos alcançarem. Eu fiquei paralisado. Fiquei apavorado no caminho de volta ao acampamento e peguei alguns desvios errados. Se tivesse sido um pouco mais rápido...
– Pare com isso – disse Annabeth. – Ninguém culpa você. Thalia também não o culpou.
– Ela se sacrificou para nos salvar – disse ele, desconsolado. – Sou culpado pela morte dela. O Conselho dos Anciãos de Casco Fendido disse isso.
– Porque você não deixou outros dois meios-sangues para trás? – disse eu. – Isso não é justo.
– Percy tem razão – disse Annabeth. – Eu não estaria aqui hoje se não fosse por você, Grover. Nem Luke. Não estamos nem aí para o que diz o conselho.
Grover continuou fungando no escuro.
– É a minha sina. Sou o mais fraco dos sátiros, e encontro os dois meios-sangues mais poderosos do século, Thalia e Percy.
– Você não é fraco – insistiu Annabeth. – Tem mais coragem do que qualquer sátiro que já conheci. Cite outro que se atreveria a ir para o Mundo Inferior. Aposto que Percy está muito contente por você estar aqui agora.
Ela me chutou na canela.
– Sim – falei, o que teria feito mesmo sem o chute. – Não foi por sina que você encontrou Thalia e eu, Grover. Você tem o maior coração entre todos os sátiros. Você é um buscador natural. E você é quem vai achar Pan.
Ouvi um suspiro profundo e satisfeito. Esperei que Grover dissesse algo, mas sua respiração só ficou mais pesada. Quando o som se transformou em ronco, percebi que ele tinha caído no sono.
– Como ele faz isso? – maravilhei-me.
– Não sei – disse Annabeth. – Mas foi realmente legal o que você disse a ele.
– Eu fui sincero.
Viajamos em silêncio por alguns quilômetros, sacudindo acima dos sacos de ração. A zebra mascou um nabo. O leão lambeu o que restara da carne de hambúrguer dos lábios e olhou para mim esperançoso.
Annabeth esfregou seu colar como se estivesse bolando grandes estratégias.
– Essa conta do pinheiro — disse eu. — É do seu primeiro ano?
Ela olhou. Não havia percebido o que estava fazendo.
– É – falou. – Todo mês de agosto os conselheiro escolhem o evento mais importante do verão, e o pintam nas contas daquele ano. Eu fiquei com o pinheiro de Thalia, uma trirreme grega em chamas, um centauro vestido para um baile... bem, aquele foi um verão estranho...
– E o anel de formatura é do seu pai?
– Isso não é da sua... – Ela se interrompeu. – Sim. Sim, é.
– Você não precisa me contar.
– Não... tudo bem. – Ela respirou fundo, vacilante. – Meu pai o mandou para mim dentro de uma carta, há dois verões. O anel era, bem, sua maior recordação de Atena. Ele não teria conseguido terminar o doutorado em Harvard sem ela... É uma longa história. De qualquer modo, ele disse que queria que eu ficasse com o anel. Desculpou-se por ser um idiota, disse que me amava e sentia saudades de mim. Queria que eu fosse para casa.
– Isso não parece tão ruim assim.
– É, mas... o problema é que eu acreditei nele. Tentei ir para casa naquele ano escolar, mas minha madrasta era a mesma de sempre. Não queria ver seus filhos em perigo por viver com uma aberração. Monstros atacavam. A gente brigava. Não aguentei nem mesmo até as férias inverno. Chamei Quíron e voltei direto para o Acampamento Meio-Sangue.
– Você acha que vai tentar viver com seu pai de novo?
Ela não me olhou nos olhos.
– Por favor. Não estou a fim de me autoflagelar.
– Você não devia desistir – falei. – Devia lhe escrever uma carta, ou coisa assim.
– Obrigada pelo conselho – disse ela, friamente – mas meu pai escolheu com quem quer viver. Passamos mais alguns quilômetros em silêncio.
– Então, se os deuses brigarem – falei – as coisas vão ficar como na Guerra de
Tróia? Será Atena contra Poseidon?
Ela encostou a cabeça na mochila que Ares nos dera e fechou olhos.
– Não sei o que a minha mãe vai fazer. Só sei que vou lutar junto com você.
– Por quê?
– Porque você é meu amigo, cabeça de alga. Mais alguma pergunta boba?
Não consegui pensar em uma resposta para aquilo. Felizmente, não precisei. Annabeth estava dormindo.
Tive dificuldade em seguir o exemplo dela, com Grover roncando e um leão albino me olhando com ar esfomeado, mas por fim fechei os olhos.
Meu pesadelo começou como um milhão de vezes antes: eu sendo forçado a fazer um teste usando uma camisa de força. Todas as outras crianças estavam saindo para o recreio, e o professor dizendo: Vamos, Percy. Você não é burro, não é? Pegue seu lápis.
Então o sonho tomou um rumo diferente.
Olhei para a carteira ao lado e vi uma menina sentada, que também usava uma camisa de força. Tinha a minha idade, com um cabelo preto rebelde, estilo punk, delineador escuro em volta dos olhos verdes tempestuosos, e sardas no nariz. De algum modo, eu sabia quem era. Thalia, filha de Zeus.
Ela se debateu na camisa de força, olhou para mim com raiva e frustração, e disparou: E então, cabeça de alga? Um de nós precisa sair daqui.
Ela tem razão, pensei no sonho. Vou voltar para aquela caverna. Vou dizer o que penso na cara de Hades.
A camisa de força se dissolveu e fiquei livre. Caí através do piso da sala de aula. A voz do professor mudou até ficar fria e maligna, ecoando das profundezas de um grande abismo.
Percy Jackson, disse. Sim, a troca foi bem, estou vendo.
Eu estava novamente na caverna escura, com os espíritos dos mortos flutuando à minha volta. De dentro do poço, sem ser vista, a coisa monstruosa falava, mas não se dirigia a mim. O poder entorpecedor de sua voz parecia dirigir-se a outro lugar.
E ele não suspeita de nada? perguntou.
Outra voz, uma que quase reconheci, respondeu junto ao meu ombro:
Nada, meu senhor. Ele é tão ignorante quanto o resto.
Ohei, mas não havia ninguém lá. Quem falara estava invisível.
Mentira em cima de mentira, refletiu em voz alta a coisa no poço. Excelente. Na verdade, meu senhor, disse a voz ao meu lado, o nome O Trapaceiro lhe foi muito bem aplicado, mas aquilo foi de fato necessário? Eu poderia ter trazido o que roubei diretamente para o senhor...
Você?, escarneceu o monstro. Você já mostrou seus limites. Teria falhado completamente sem minha intervenção.
Mas, meu senhor...
Por favor, pequeno servo. Nossos seis meses nos renderam muito. A ira de Zeus cresceu. Poseidon jogou sua cartada mais desesperada. Agora devemos usá-la contra ele. Logo você terá a recompensa que deseja, e sua vingança. E assim que ambos os itens forem entregues em minhas mãos... mas espere. Ele está aqui.
O quê?
O servo invisível de repente pareceu tenso.
Acaso o convocou, meu senhor?
Não.
Toda a força da atenção do monstro agora se despejava sobre mim, paralisando-me.
Maldito seja o sangue de seu pai — ele é inconstante demais, imprevisível demais. O menino trouxe a si mesmo para cá.
Impossível!, exclamou o servo.
Para alguém fraco como você, talvez, rosnou a voz. Depois sua força gélida se voltou de novo para mim. Então... você quer sonhar com sua missão, meio-sangue? Pois vou atendê-lo.
O cenário mudou.
Eu estava numa vasta sala com um trono, com paredes de mármore negro e piso de bronze. O horripilante trono vazio era feito de ossos humanos fundidos. Postada ao pé do degrau estava minha mãe, uma estátua de luz dourada tremeluzente, os braços estendidos.
Tentei avançar em sua direção, mas minhas pernas não se moviam. Estendi a mão para ela, apenas para perceber que minhas mãos haviam murchado até os ossos. Esqueletos sorridentes de armadura grega se juntavam ao meu redor, vestindo-me com mantos de seda, coroando-me com louros que fumegavam com veneno da Quimera, queimando-me o couro cabeludo.
A voz maligna começou a rir.
Vivas ao herói conquistador!
Acordei assustado.
Grover sacudia meu ombro.
– O caminhão parou – disse ele. – Achamos que eles vêm checar os animais.
– Escondam-se! – Annabeth falou baixinho.
Para ela foi fácil. Pôs na cabeça seu boné mágico e desapareceu. Grover e eu tivemos de mergulhar atrás dos sacos de ração e torcer para parecermos dois nabos.
As portas da carreta se abriram com um rangido. A luz e o calor do sol entraram.
– Cara! – disse um dos caminhoneiros, abanando a mão na frente do nariz feio. – Queria estar transportando eletrodomésticos. – Ele trepou para dentro e despejou um pouco d’água nas vasilhas dos animais.
– Com calor, garotão? – perguntou ao leão, e então esvaziou o resto do balde direto na cara do animal. O leão rugiu de indignação.
– Certo, certo, certo – disse o homem.
Ao meu lado, embaixo dos sacos de nabos, Grover se retesou. Para um herbívoro amante da paz, ele parecia absolutamente sanguinário. O caminhoneiro jogou um saco meio esmagado de McLanche Feliz para o antílope. E arreganhou um sorriso para a zebra:
– Tudo em cima, Listradona? Ao menos nos livraremos de você nesta parada. Gosta de shows de mágica? Vai adorar este. Vão serrar você no meio!
A zebra, com os olhos arregalados de medo, olhou diretamente para mim. Não houve som nenhum, mas claro como o dia, eu a ouvi dizer: Liberte-me, senhor. Por favor.
Fiquei perplexo demais para reagir.
Houve um forte toque-toque-toque na lateral da carreta.
O caminhoneiro que estava dentro, conosco, gritou:
– O que você quer, Eddie?
Uma voz do lado de fora – deve ter sido a de Eddie – gritou volta:
– Maurice? O que você disse?
– Por que está batendo?
Toque-toque-toque.
De fora, Eddie gritou:
— Quem está batendo?
O nosso cara, Maurice, revirou os olhos e voltou para fora, xingando Eddie por ser tão idiota.
Um segundo depois, Annabeth apareceu ao meu lado. Devia ser ela quem fez as batidas, para tirar Maurice da carreta. Ela disse:
– Esse negócio de transporte não deve ser legal.
– Mentira? – disse Grover. Ele fez uma pausa, como se estivesse escutando. – O leão diz que esses caras são contrabandistas de animais!
É verdade, disse a voz da zebra dentro da minha cabeça.
– Temos de libertá-los! – disse Grover. Ele e Annabeth olharam para mim, esperando meu comando.
Eu tinha ouvido a zebra falar, mas não o leão. Por quê? Talvez fosse mais uma deficiência de aprendizado... Será que eu só podia entender zebras? Então pensei: cavalos. O que Annabeth dissera sobre Poseidon criar cavalos? Uma zebra seria próxima o bastante de um cavalo? Será que era por isso que eu podia entendê-la?
A zebra disse: Abra minha jaula, senhor. Por favor. Ficarei bem, depois disso.
A zebra disparou para fora. Virou-se para mim e inclinou a cabeça. Obrigada, senhor.
Grover ergueu as mãos e disse algo a ela em sua fala de bode, como uma bênção. No momento em que Maurice enfiava a cabeça para verificar que barulho era aquele lá dentro, a zebra saltou por cima dele para a rua. Houve berros, gritos e carros buzinando.
Corremos para as portas da carreta a tempo de ver a zebra galopando por uma avenida ladeada por hotéis, cassinos e letreiros de néon. Tínhamos acabado de soltar uma zebra em Las Vegas.
Maurice e Eddie correram atrás dela, com alguns policiais correndo atrás deles e gritando:
– Ei! Vocês precisam de permissão para isso!
– Agora seria um bom momento para dar o fora – disse Annabeth.
– Primeiro os outros animais – disse Grover.
Cortei as trancas com minha espada. Grover ergueu as mãos e falou a mesma bênção de bode que usara para a zebra.
– Boa sorte – disse aos animais. O antílope e o leão dispararam para fora das jaulas e foram juntos para as ruas.
Alguns turistas gritaram. A maioria recuou e tirou fotos, provavelmente pensando que se tratasse de algum tipo de show de um dos cassinos.
– Os animais vão ficar bem? – perguntei a Grover. – Quer dizer, o deserto e tudo...
– Não se preocupe – disse ele. – Eu lhes dei uma bênção de sátiro.
– O que quer dizer isso?
– Quer dizer que chegarão à floresta em segurança – disse ele. – Encontrarão água, comida, sombra, e o que mais precisarem até acharem um lugar seguro para viver.
– Por que você não pode fazer uma oração dessas para nós? – perguntei.
– Só funciona com animais.
– Então só iria afetar Percy – ponderou Annabeth.
– Ei! – protestei.
– Brincadeirinha – disse ela. – Venha. Vamos sair desse caminhão imundo.
Cambaleamos para fora, para a tarde do deserto. Fazia quarenta e três graus, fácil, e devíamos estar parecendo vagabundos fritos, mas todos estavam interessados demais nos animais selvagens para prestar muita atenção em nós.
Passamos pelo Monte Carlo e pela MGM. Passamos por pirâmides, por um navio pirata e pela Estátua da Liberdade, que era uma réplica bem pequena, mas ainda assim me deixou com saudades de casa.
Não sabia muito bem o que estávamos procurando. Talvez apenas um lugar para fugir do calor por alguns minutos, achar um sanduíche e um copo de limonada, bolar um novo plano para chegar ao oeste.
Provavelmente, entramos numa rua errada, pois chegamos a um beco sem saída, em frente ao Hotel e Cassino Lótus. A entrada era uma enorme flor de néon, as pétalas acendendo e piscando. Ninguém entrava nem saía, mas as reluzentes portas cromadas estavam abertas, espalhando ar condicionado com cheiro de flores — flor de lótus, quem sabe. Eu nunca cheirara uma, por isso não tinha certeza.
O porteiro sorriu para nós.
– Ei, crianças. Vocês parecem cansados. Querem entrar e sentar?
Tinha aprendido a ser desconfiado, mais ou menos na última semana. Imaginava que qualquer um poderia ser um monstro ou um deus. Não dava para saber. Mas aquele cara era normal. Era só olhar. Além disso, fiquei tão aliviado de ouvir alguém que parecia simpático que assenti e disse que adoraríamos entrar. Dentro, demos uma olhada em volta e Grover disse:
– Uau.
O saguão inteiro era uma sala de jogos gigante. E não estou falando de joguinhos vagabundos como o velho Pac-Man ou os caça-níqueis. Havia um toboágua serpenteando em volta do elevador de vidro, que subia pelo menos quarenta andares.
Havia uma parede de escalada ao lado de um edifício, e uma ponte interna para bungee jump.
Trajes de realidade virtual com pistolas laseres que funcionavam. E centenas de videogames, cada qual do tamanho de uma tevê widescreen. Basicamente, o que você disser, o lugar tinha. Havia algumas outras crianças jogando, mas não muitas. Não havia espera para nenhum dos jogos. Garçonetes e lanchonetes estavam por toda parte, servindo todo tipo de comida que se possa imaginar.
– Ei! – disse um mensageiro. Pelos menos achei que fosse um mensageiro. Usava uma camisa havaiana branca e amarela com desenhos de lótus, short e sandálias de dedo. – Bem-vindos ao Cassino Lótus. Aqui está a chave do seu quarto.
Eu gaguejei:
– Ahn, mas...
– Não, não – disse ele, rindo. –A conta já foi paga. Sem taxas extras, sem gorjetas. Vocês só precisam subir para o último andar, quarto 4001. Se precisarem alguma coisa, como mais espuma para a banheira quente ou alvos para tiro ao prato, ou o que for, é só ligar para a recepção. Aqui estão os seus cartões GranaLótus. Eles funcionam nos restaurantes e em todos os jogos e brinquedos.
Ele entregou a cada um de nós um cartão de crédito de plástico verde. Eu sabia que devia haver algum engano. Obviamente ele pensara que éramos crianças milionárias. Mas peguei o cartão e disse:
– Quanto tem aqui?
Ele juntou as sobrancelhas.
– O que quer dizer?
– Quero dizer quanto temos de crédito?
Ele riu.
– Ah, é uma piada. Ei, legal. Aproveitem sua estada.
Subimos de elevador e conferimos nosso quarto. Era uma suíte com três dormitórios separados e um bar cheio de doces, refrigerantes e salgadinhos. Uma linha direta para o serviço de quarto. Toalhas fofas e camas d'água com travesseiros de penas. Uma televisão enorme com satélite e Internet banda larga. A varanda tinha sua própria banheira quente e, de fato, uma máquina de lançar pratos e uma espingarda – dava para lançar pombos de louça sobre a paisagem de Las Vegas e acertá-los com a espingarda.
Não entendi como aquilo podia ser permitido, mas achei muito legal. A vista para a Vegas Boulevard e o deserto era maravilhosa, muito embora eu duvidasse que teríamos tempo para admirar a paisagem com um quarto como aquele.
– Ah, deuses – disse Annabeth. – Este lugar é...
– Maravilhoso – disse Grover. – Supermaravilhoso.
Havia roupas no armário, e cabiam em mim. Franzi a testa, achando um pouco estranho. Joguei a mochila de Ares na lata de lixo. Não precisaria mais daquilo. Quando fôssemos embora, poderia comprar uma nova loja do hotel.
Tomei um banho, o que foi uma sensação ótima depois de uma semana de viagem suja. Troquei de roupa, comi um saco de salgadinhos, bebi três Cocas e não me sentia tão bem havia muito tempo. Bem no fundo da cabeça, um probleminha me incomodava. Eu tivera um sonho, ou coisa assim... Precisava falar com meus amigos. Mas certamente aquilo podia esperar.
Saí do quarto e vi que Annabeth e Grover também tinham tomado banho e trocado de roupa. Grover estava comendo batatinhas até se fartar, enquanto Annabeth sintonizava o National Geographic Channel.
– Todos esses canais – disse a ela – e você liga no National Geographic. Está maluca?
– É interessante.
– Eu me sinto bem – disse Grover. – Adoro este lugar.
Sem que ele se desse conta, as asas apareceram nos seus tênis e o suspenderam a trinta centímetros do chão, depois o desceram de novo.
– Então, o que fazemos agora? – Perguntou Annabeth. – Dormimos?
Grover e eu nos entreolhamos e sorrimos. Ambos erguemos os nossos cartões GranaLótus de plástico verde.
– Hora do recreio – falei.
Não conseguia me lembrar da última vez em que me divertira tanto. Eu vinha de uma família relativamente pobre. Para nós, esbanjar era comer fora no Burger King e alugar um vídeo. Um hotel cinco estrelas em Vegas? Nem pensar.
Pulei de bungee-jump no saguão cinco ou seis vezes, andei no toboágua, fiz snowboard na rampa de neve artificial, joguei lasertag e atirador de elite do FBI em realidade virtual. Vi Grover algumas vezes, indo de jogo em jogo. Ele tinha gostado mesmo daquela coisa do caçador às avessas — em que os cervos saem e atiram contra os caipiras. Vi Annabeth jogando trívia e outros jogos de cabeçudos. Havia um Sim enorme em 3D, no qual você podia construir sua própria cidade e realmente ver os edifícios holográficos subirem no tabuleiro. Não dei muita importância para esse, mas Annabeth adorou.
Não sei muito bem quando percebi que algo estava errado.
Provavelmente, foi quando reparei no cara que estava em pé ao meu lado no jogo dos atiradores de elite virtuais. Tinha cerca de treze anos, eu acho, mas suas roupas eram esquisitas. Achei que fosse filho de algum dublê do Elvis Presley. Usava jeans boca de sino e uma camiseta vermelha com enfeites pretos, e o cabelo era cacheado e cheio de gel, como o de uma garota de New Jersey em noite de reunião de ex-alunos.
Brincamos juntos no jogo de atiradores, e ele disse:
– Joinha, bicho. Estou aqui há duas semanas e os jogos estão cada vez melhores.
Joinha, bicho?
Mais tarde, enquanto conversávamos, eu disse que alguma coisa era "irada" e ele me olhou meio surpreso, como se nunca tivesse ouvido a palavra ser usada daquele jeito antes.
Disse que seu nome era Darrin, mas assim que comecei a fazer perguntas ele se aborreceu e fez menção de voltar para a tela do computador.
Eu disse:
– Ei, Darrin?
– O quê?
– Em que ano estamos?
Ele franziu a testa para mim.
– No jogo?
– Não. Na vida real.
Ele precisou pensar.
– Mil novecentos e setenta e sete.
– Não – falei, começando a ficar um pouco assustado. – De verdade.
– Ei, bicho. Vibrações ruins. Estou no meio de um jogo.
Depois disso ele me ignorou totalmente. Comecei a falar com as pessoas e descobri que não era fácil.
Elas estavam grudadas na tela da tevê ou no videogame ou no que fosse. Achei um cara que me disse que era 1985. Outro cara me disse que era 1993. Todos alegavam não estar ali há muito tempo, alguns dias, algumas semanas no máximo. Realmente não sabiam, nem se importavam com isso.
Então me ocorreu: havia quanto tempo eu estava ali? Pareciam apenas algumas horas, mas seriam mesmo?
Tentei lembrar por que estávamos ali. Íamos para Los Angeles. Deveríamos encontrar a entrada para o Mundo Inferior. Minha mãe... por um momento apavorante, tive dificuldade de lembrar o nome dela. Sally. Sally Jackson. Eu tinha de encontrá-la. precisava impedir Hades de desencadear a Terceira Guerra Mundial.
Achei Annabeth ainda construindo sua cidade.
– Vamos – disse a ela. – Precisamos sair daqui.
Nenhuma resposta.
– Annabeth?
Ela ergueu os olhos, aborrecida.
– O quê?
– Escute. O Mundo Inferior. A nossa missão!
– Ora, vamos, Percy. Só mais alguns minutos.
– Annabeth, há gente aqui desde 1977. Crianças que nunca cresceram. Quando você entra, fica para sempre.
– E dai? – perguntou ela. – Você pode imaginar lugar melhor?
Agarrei o pulso dela e a arranquei do jogo.
– Ei! – ela gritou e me bateu, mas ninguém sequer se incomodou em olhar. Estavam ocupados demais.
Eu a fiz olhar em meus olhos. Falei:
– Aranhas. Grandes aranhas peludas.
Aquilo mexeu com ela. Sua visão clareou.
– Ah, meus deuses – falou. – Há quanto tempo nós...
– Não sei, mas temos de encontrar Grover.
Saímos à procura dele, e o encontramos ainda jogando Caçador de Cervos Virtual.
– Grover! – gritamos juntos.
Ele disse:
– Morra, ser humano! Morra, pessoa tola e poluente!
– Grover!
Ele apontou a arma de plástico para mim e começou a clicar, como se eu fosse apenas mais uma imagem na tela.
Olhei para Annabeth e juntos pegamos Grover pelos braços e o arrastamos para longe. Os tênis voadores despertaram e começaram a puxar as pernas dele na direção oposta, enquanto ele gritava:
– Não! Acabei de passar de nível! Não!
O mensageiro do Lótus correu até nós.
– E então, estão prontos para os seus cartões platinum?
– Estamos indo embora – disse a ele.
– Que pena – disse ele, e tive a sensação de que ele estava sendo sincero, de que íamos despedaçar seu coração partindo. – Acabamos de anexar um novo andar cheio de jogos para portadores de cartões platinum.
Ele mostrou os cartões, e eu queria um. Sabia que, se pegasse jamais iria embora. Ficaria ali, feliz para sempre, jogando para sempre, e logo esqueceria minha mãe, e minha missão, e talvez até meu próprio nome. Ficaria jogando Atirador Virtual com o bicho-joinha-Darrin-Discoteca para sempre.
Grover estendeu a mão para o cartão, mas Annabeth puxou o braço dele e disse:
– Não, obrigada.
Fomos andando em direção à porta, e quando fizemos isso, o cheiro de comida e os sons dos jogos pareceram ficar mais e mais convidativos. Pensei em nosso quarto lá em cima. Podíamos só passar a noite, dormir em uma cama de verdade para variar...
Então disparamos pelas portas do Cassino Lótus e saímos correndo pela calçada. A sensação era de meio de tarde, mais ou menos a mesma hora que havíamos entrado no cassino, mas algo estava errado. O tempo mudara completamente. Estava tempestuoso, com raios de calor relampejando no deserto.
A mochila de Ares estava pendurada em meu ombro, o que era estranho, pois eu tinha certeza de que a jogara na lata de lixo do quarto 4001. Mas naquele momento eu tinha outros problemas com que me preocupar.
Corri para o jornal mais próximo e li o ano primeiro. Graças aos deuses, era o mesmo ano de quando entramos. Então reparei na data: 20 de junho.
Tínhamos ficado no Cassino Lótus por cinco dias.
Restava-nos só um dia até o solstício de verão. Um dia para completar nossa missão.
Capítulo 17 - Vamos comprar camas d’água
A ideia foi de Annabeth. Ela nos meteu no banco de trás de um táxi de Las Vegas como se realmente tivéssemos dinheiro, e disse ao motorista:
– Los Angeles, por favor.
O taxista mascou seu charuto e nos mediu com os olhos.
– São quatrocentos e oitenta e dois quilômetros. Para isso, vocês têm de pagar adiantado.
– Aceita cartão de débito de cassinos? — perguntou Annabeth.
Ele deu de ombros.
– Alguns. Funcionam como os cartões de crédito. Preciso passar o cartão primeiro.
Annabeth estendeu o cartão GranaLótus verde para ele.
O motorista olhou com ar desconfiado.
– Passe o cartão – convidou Annabeth.
Ele fez isso.
O taxímetro começou a crepitar. Luzes se acenderam. Por fim, um símbolo do infinito apareceu ao lado do cifrão.
O charuto caiu da boca do motorista. Ele olhou para nós de olhos arregalados.
– Em que lugar de Los Angeles... ahn... Sua Alteza?
– O píer Santa Monica. – Annabeth endireitou um pouco o corpo. Dava para perceber que ela gostara daquilo de "Sua Alteza”. – Leve-nos depressa, e pode ficar com o troco.
Talvez ela não devesse ter dito aquilo.
O velocímetro do táxi não caiu nem por um instante abaixo de cento e sessenta ao longo de todo o percurso pelo deserto de Mojave.
Na estrada, tivemos tempo à vontade para conversar. Contei a Annabeth e Grover sobre meu último sonho, mas, quanto mais tentava me lembrar, mais imprecisos foram ficando os detalhes. O Cassino Lótus parecia ter causado um curto-circuito na minha memória. Eu não conseguia me lembrar de como era o som da voz do servo, embora tivesse certeza de que era de alguém que eu conhecia. O servo chamara o monstro no abismo de algum outro nome além de "meu senhor"... Algum nome ou título especial...
– O Silencioso? – sugeriu Annabeth. – O Rico? Ambos são apelidos de Hades.
– Talvez... – falei – embora nenhum dos dois parecesse muito certo.
– A sala do trono parece ser a de Hades – disse Grover. – É assim que costumam descrevê-la.
Eu sacudi a cabeça.
– Alguma coisa está errada. A sala do trono não era a parte principal do meu sonho. E aquela voz no abismo... Eu não sei. Simplesmente não parecia a voz de um deus. Os olhos de Annabeth se arregalaram.
– O que foi? – perguntei.
– Ah... nada. Eu estava só... Não, tem de ser Hades. Talvez ele tenha mandado esse ladrão, essa pessoa invisível, para pegar o raio-mestre, e algo tenha dado errado...
– Tipo o quê?
– Eu... eu não sei – disse ela. – Mas se ele roubou o símbolo do poder de Zeus do Olimpo, e os deuses o estavam caçando, quer dizer, uma porção de coisas poderia dar errado, ou ele o perdeu de algum modo. De qualquer jeito, não conseguiu levá-lo até Hades. Foi isso o que a voz disse no seu sonho, certo? O cara fracassou. Isso explicaria o que as Fúrias estavam procurando quando vieram atrás de nós no ônibus. Talvez achem que recuperamos o raio.
Não sabia muito bem o que estava errado com ela. Parecia pálida.
– Mas se eu já tivesse recuperado o raio – falei – por que estaria viajando para o Mundo Inferior?
– Para ameaçar Hades – sugeriu Grover. – Para suborná-lo ou chantageá-lo para devolver sua mãe.
Eu assobiei.
– Você tem pensamentos perversos para um bode.
– Ora, obrigado.
– Mas a coisa no abismo disse que estava esperando dois – falei. – Se o raio-mestre é um, qual é o outro?
Grover sacudiu a cabeça, claramente perplexo.
Annabeth olhava para mim como se soubesse qual seria a minha próxima pergunta e estivesse desejando silenciosamente que eu não a fizesse.
– Você tem ideia do que poderia estar naquele abismo não tem? – perguntei a ela. – Quer dizer, se não for Hades.
– Percy... não vamos falar sobre isso. Porque se não for Hades... Não. Tem de ser Hades.
A desolação passava por nós. Passamos por uma placa que dizia DIVISA DO ESTADO DA CALIFÓRNIA, VINTE QUILÔMETROS.
Tive a sensação de que estava deixando de notar alguma informação simples e crucial.Era como quando eu olhava para uma palavra que deveria conhecer, mas ela não fazia sentido porque uma ou duas letras estavam flutuando fora do lugar. Quanto mais eu pensava sobre minha missão, mais certeza tinha de que confrontar Hades não era a verdadeira resposta. Havia algo mais acontecendo, algo ainda mais perigoso.
O problema era: estávamos disparados na direção do Mundo Inferior a cento e sessenta quilômetros por hora, apostando que Hades tinha o raio-mestre. Se chegássemos lá e descobríssemos que estávamos errados, não teríamos tempo para corrigir o erro. O prazo do solstício passaria e a guerra começaria.
– A resposta está no Mundo Inferior – assegurou Annabeth. – Você viu os espíritos dos mortos, Percy. Só há um lugar onde isso é possível. Estamos fazendo a coisa certa.
Ela tentou levantar a nossa moral sugerindo estratégias engenhosas para entrar na Terra dos Mortos, mas meu coração não estava naquilo. O fato é que havia muitos fatores desconhecidos. Era como estudar loucamente para uma prova sem saber qual é o assunto. E, acredite-me, isso eu já fizera muitas vezes.
O táxi ia a toda para oeste. Cada rajada de vento no Vale da Morte parecia um espírito dos mortos. Cada vez que os freios chiavam atrás de um caminhão de dezoito rodas, aquilo me lembrava a voz reptiliana de Equidna.
Ao pôr do sol, o táxi nos deixou na praia de Santa Monica. Era exatamente como as praias de Los Angeles que se veem nos filmes, só que o cheiro era pior. Havia carrosséis de parque de diversão ao longo do píer, palmeiras nas calçadas, sem-teto dormindo nas dunas e surfistas esperando a onda perfeita,
Grover, Annabeth e eu caminhamos até a beira-mar.
– E agora? – perguntou Annabeth.
O Pacífico estava ficando dourado ao sol poente. Pensei em quanto tempo se passara desde que estivera na praia de Montauk, do outro lado do país, olhando para um mar diferente.
Como podia haver um deus capaz de controlar aquilo tudo? O que meu professor de ciências dizia – dois terços da superfície da Terra são cobertos de água? Como eu podia ser filho de alguém tão poderoso?
Entrei na arrebentação.
–Percy? – disse Annabeth. – O que está fazendo?
Continuei andando, até a água chegar à minha cintura, depois ao peito. Ela gritou para mim:
– Tem ideia de quanto essa água está poluída? Há todos os tipos de coisas tóxicas...
Foi quando minha cabeça submergiu.
De início, prendi a respiração. É difícil inalar água de propósito. Por fim não pude mais aguentar. Inspirei. De fato, eu conseguia respirar normalmente.
Desci andando até os bancos de areia. Não deveria conseguir enxergar naquelas águas escuras, mas de algum modo podia dizer onde tudo estava. Conseguia sentir a textura ondulada do fundo. Podia distinguir colônias de estrelas-do-mar pontilhando os bancos de areia. Podia até ver as correntes, quentes e frias, rodopiando juntas.
Senti algo roçando a minha perna. Olhei para baixo e pulei para fora da água como um míssil. Deslizando ao meu lado, havia um tubarão-sombreiro de um metro e meio de comprimento.
Mas ele não estava atacando, apenas esfregava o nariz em mim. Estava nos meus calcanhares como um cachorro. Vacilante, toquei sua barbatana dorsal. Ele resistiu um pouco, como se estivesse me convidando a segurar mais forte. Agarrei a barbatana com as duas mãos. Ele partiu, me puxando. O tubarão me arrastou para o fundo, para a escuridão, e me largou à beira do oceano propriamente dito, onde o banco de areia despencava em um imenso abismo. Era como estar na beira do Grand Canyon à meia-noite, sem conseguir ver muita coisa mas sabendo que o vazio estava bem ali.
A superfície tremeluzia a uns cinquenta metros. Eu sabia que devia ter sido esmagado pela pressão. Mas, por outro lado, o natural era que também não respirasse. Fiquei imaginando se haveria um limite até o qual eu poderia avançar, e se era possível descer direto até o fundo do Pacífico.
Então vi algo reluzindo na escuridão abaixo, ficando maior e mais brilhante à medida que subia na minha direção. Uma voz de mulher, como a da minha mãe, chamou:
– Percy Jackson.
Quando ela chegou mais perto, sua forma ficou mais clara. Tinha cabelos pretos soltos e usava um vestido de seda verde. A luz tremeluzia a seu redor, e os olhos eram tão perturbadoramente bonitos que mal notei o cavalo-marinho do tamanho de um corcel em que ela estava montando.
Ela desmontou. O cavalo-marinho e o tubarão-sombreiro se afastaram rapidamente e começaram uma brincadeira que parecia esconde-esconde. A dama submarina sorriu para mim.
– Você chegou longe, Percy Jackson. Muito bem!
Eu não sabia muito bem o que fazer, então me curvei.
– Você é a mulher que falou comigo no rio Mississipi.
– Sim, criança. Eu sou uma nereida, um espírito do mar. Não foi fácil aparecer tão longe, rio acima, mas as náiades, minhas primas da água doce, ajudaram a sustentar minha força vital. Elas honram o Senhor Poseidon, embora não sirvam em sua corte.
– E... você serve na corte de Poseidon?
Ela assentiu.
– Muitos anos se passaram desde que nasceu uma criança do Deus do Mar. Nós o observamos com grande interesse.
De repente me lembrei dos rostos nas ondas perto da praia de Montauk quando eu era pequeno, reflexos de mulheres sorridentes. Como com tantas coisas estranhas em minha vida, nunca havia pensado muito naquilo.
– Se meu pai se interessa tanto por mim – falei – por que não está aqui? Por que não fala comigo?
Uma corrente fria subiu das profundezas.
– Não julgue o Senhor do Mar tão duramente – disse-me a nereida. – Ele está prestes a lutar em uma guerra indesejada. Tem muito com que ocupar seu tempo. Além disso, está proibido de ajudá-lo diretamente. Os deuses não podem demonstrar tal favoritismo.
– Mesmo com seus próprios filhos?
– Especialmente com estes. Os deuses só podem agir por influência indireta. E por isso que lhe dou um aviso, e um presente.
Ela estendeu a mão aberta e três pérolas brancas brilharam.
– Sei de sua jornada aos domínios de Hades – disse. – Poucos mortais já fizeram isso e sobreviveram: Orfeu, que possuía grande talento musical; Hércules, que tinha grande força; Houdini, que podia escapar até mesmo das profundezas do Tártaro. Você tem esses talentos?
– Ahn... não, senhora.
– Ah, mas você tem algo mais, Percy. Possui dons que esta apenas começando a descobrir. Os oráculos vaticinaram um grande e extraordinário futuro para você, desde que sobreviva até a idade adulta. Poseidon não aceitará que morra antes do tempo, portanto pegue estas pérolas, e quando estiver em apuro, esmague elas a seus pés.
– O que vai acontecer?
– Depende do apuro. Mas lembre: o que pertence ao mar sempre retornará ao mar.
– E o aviso?
Os olhos dela brilharam com uma luz verde.
– Faça o que seu coração manda, ou perderá tudo. Hades se alimenta de dúvidas e desesperança. Ele o enganará se puder, o fará desconfiar de seu próprio julgamento. Depois que estiver nos domínios dele, Hades jamais permitirá voluntariamente que você parta. Mantenha a fé. Boa sorte, Percy Jackson.
Ela chamou seu cavalo-marinho e partiu para o vazio.
– Espere! – gritei. – No rio, você disse para não confiar em presentes. Que presentes?
– Adeus, jovem herói – gritou ela de volta, a voz desaparecendo nas profundezas. – Você deve ouvir seu coração. – Ela se transformou em um ponto verde luminoso e depois desapareceu. Eu quis segui-la para as profundezas escuras. Quis ver a corte de Poseidon. Mas ergui os olhos para o crepúsculo que se transformava em noite na superfície. Meus amigos estavam esperando. Tínhamos tão pouco tempo...
Tomei impulso para cima em direção à arrebentação.
Quando cheguei à praia, minhas roupas secaram instantaneamente. Contei a Grover e a Annabeth o que acontecera, e mostrei as pérolas a eles.
Annabeth fez uma careta.
– Nenhum presente vem sem um preço.
– Elas foram de graça.
– Não. – Ela sacudiu a cabeça. – "Não existe almoço grátis." É um antigo ditado grego que se aplica perfeitamente hoje em dia. Haverá um preço. Aguarde.
Com esse pensamento feliz, demos as costas para o mar.
Tomamos o ônibus para West Hollywood com um pouco dos trocados que sobraram na mochila de Ares. Mostrei ao motorista o recibo com o endereço do Mundo Inferior que eu pegara no Empório de Anões de Jardim da Tia Eme, mas ele nunca ouvira falar nos Estúdios de Gravação M.A.C. – Morto ao Chegar.
– Você me lembra alguém que vi na tevê – falou – ator infantil, ou coisa assim?
– Ahn... eu sou dublê... de uma porção de atores infantis.
– Ah! Está explicado.
Agradeci e desci rapidamente na parada seguinte.
Perambulamos por quilômetros à procura do M.A.C. Ninguém parecia saber onde era. Não constava da lista telefônica. Duas vezes nos esquivamos para becos, para evitar viaturas de polícia.
Fiquei paralisado na frente da vitrine de uma loja de eletrodomésticos porque uma televisão mostrava uma entrevista com alguém que pareceu muito familiar – meu padrasto, Gabe Cheiroso. Ele estava falando com Barbara Walters – parecendo uma grande celebridade. Ela o entrevistava em nosso apartamento, no meio de um jogo de pôquer, e havia uma jovem loira sentada ao lado dele, afagando-lhe a mão.
Uma lágrima falsa brilhou na bochecha dele enquanto ele dizia:
– Honestamente, Sra. Walters, se não fosse aqui pela Fofinha, minha conselheira nas horas tristes, eu estaria um caco. Meu enteado levou tudo o que me era caro... Minha esposa... meu Camaro... eu... desculpe. Sinto dificuldade em falar sobre isso.
– Ai está, América. – Barbara Walters voltou-se para a câmera. – Um homem destroçado. Um menino adolescente com sérios problemas. Deixem-me mostrar agora a última foto desse problemático jovem fugitivo, tirada há uma semana em Denver.
A tela cortou para uma foto granulada em que eu, Annabeth e Grover do lado de fora do restaurante Colorado estávamos falando com Ares.
– Quem são as outras crianças nesta foto? – perguntou Barbara Walters com dramaticidade. – Quem é o homem que está com elas? Percy Jackson é um delinquente, um terrorista ou uma vítima da lavagem cerebral de uma nova e assustadora seita? Quando voltarmos, vamos conversar com uma renomada psicóloga infantil. Fique conosco, América.
– Vamos – disse-me Grover. Ele me arrastou para longe antes que eu abrisse um buraco na vitrine da loja de eletrodomésticos com um murro.
Anoiteceu, e personagens de aparência esfomeada começaram a sair para as ruas para representar seus papéis. Não me entendam mal. Sou nova-iorquino. Não me assusto facilmente. Mas estar em Los Angeles era bem diferente de estar em Nova York. Onde eu morava tudo parecia perto. Embora fosse uma grande cidade, era possível se chegar a qualquer lugar sem se perder. O padrão das ruas e o metrô faziam sentido. Havia um critério de funcionamento das coisas. Desde que não fosse bobo, um garoto podia se sentir seguro lá.
Los Angeles não era assim. Era espalhada, caótica, ficava difícil se locomover. Fazia lembrar Ares. Para Los Angeles, não bastava ser grande; era preciso também provar-se grande sendo barulhenta, estranha e difícil de navegar. Eu não sabia como iríamos encontrar a entrada para o Mundo Inferior até o dia seguinte, o solstício de verão.
Passamos por gangues, vagabundos e camelôs, que nos olhavam como se tentassem avaliar se nos atacar seria um bom negócio.
Quando passamos apressados pela entrada de um beco, uma voz disse no escuro:
– Ei, você.
Como um idiota, parei. Antes que nos déssemos conta, estávamos cercados, Uma gangue de garotos estava ao nosso redor. Seis ao todo – garotos brancos com roupas caras e expressão perversa.
Como os garotos da Academia Yancy; moleques ricos brincando de ser malvados. Por instinto, destampei Contracorrente.
Quando a espada apareceu do nada, eles recuaram, mas seu líder ou era muito estúpido ou muito valente, porque continuou avançando em minha direção com um canivete de mola.
Cometi o erro de desferir um golpe.
O garoto deu um grito agudo. Mas ele devia ser cem por cento mortal, porque a lâmina passou inofensiva por seu peito. Ele olhou para baixo.
– Mas que...
Calculei que teria mais ou menos três segundos antes que o choque dele se transformasse em raiva.
– Corram! – gritei para Annabeth e Grover.
Empurramos dois deles para fora do caminho e disparamos pela rua, sem saber aonde estávamos indo. Dobramos uma esquina numa curva bem fechada.
– Ali! – gritou Annabeth.
Somente uma loja do quarteirão parecia aberta, as vitrines brilhando em néon. O letreiro acima da porta dizia algo como LACIÁPO ADS MASCA Á’GDUS OS SCRATO.
– Palácio das Camas d'Água do Crosta? – traduziu Grover.
Não parecia o tipo de lugar onde eu entraria a não ser em uma emergência, mas sem dúvida era essa a situação.
Irrompemos pelas portas, corremos para trás de uma cama d’água e nos abaixamos. Uma fração de segundo depois, a gangue de garotos passou correndo do lado de fora.
– Acho que os despistamos – ofegou Grover.
Uma na voz atrás de nós retumbou:
– Despistaram quem?
Nos três pulamos. Logo atrás, em pé, estava um cara que parecia um tiranossauro em trajes de passeio. Tinha pelo menos dois metros e tanto de altura, completamente careca. A pele era cinzenta e curtida como couro, olhos de pálpebras grossas e sorriso frio, reptiliano.
Aproximava-se lentamente, mas tive a sensação de que poderia se mover depressa se precisasse.
Seu traje parecia saído do Cassino Lótus. Era dos gloriosos anos 70. A camisa era de seda estampada, desabotoada até a metade do peito sem pelos. As lapelas do casaco de veludo eram largas como pistas de pouso. Eram tantas correntes de prata no pescoço que nem consegui contar.
– Eu sou o Crosta – disse com um sorriso amarelo de tanto tártaro.
Resisti ao impulso de dizer, Sim, está na cara.
– Desculpe a invasão – falei. – Estamos só, ahn, dando uma olhada.
– Você quer dizer, se escondendo daqueles garotos mal-encarados – resmungou ele. – Eles ficam vadiando por aqui todas as noites. Entra uma porção de gente na loja, graças a eles. Digam, querem ver uma cama d'água?
Eu já ia dizer Não, obrigado quando ele pôs uma pata enorme no meu ombro e me empurrou mais para dentro do salão da loja. Havia todos os tipos de camas d'água que você possa imaginar: diferentes tipos de madeira, lençóis de padronagem variadas; queen-size, king-size, gigantescas.
– Este é meu modelo de maior sucesso. – Crosta passou as mãos orgulhosamente sobre uma cama coberta com cetim preto, com lâmpadas de lava embutidas na cabeceira. O colchão vibrava, e a coisa ficava parecendo gelatina de petróleo.
– Massagem de um milhão mãos – disse Crosta. – Vão em frente, experimentem. Tirem uma soneca, mandem ver. Eu não importo. Tem pouco movimento hoje.
– Ahn – falei. – Não acho que...
– Massagem de um milhão de mãos! — exclamou Grover, e mergulhou na cama. – Ah, gente! Isso é legal.
– Hummm – disse Crosta, coçando o seu queixo de couro. – Quase, quase.
– Quase o quê? – perguntei.
Ele olhou para Annabeth.
– Faça-me um favor e experimente aquela lá, meu bem. Pode servir.
Annabeth disse:
– Mas o que...
Ele lhe deu algumas palmadinhas tranquilizadoras no ombro e a levou para o modelo Safári Deluxe, com leões de teca entalhados na armação e um acolchoado de leopardo.
Como Annabeth não quis deitar, Crosta a empurrou.
– Ei! – protestou ela.
Crosta estalou os dedos.
– Ergo!
Cordas pularam das laterais da cama e envolveram Annabeth como chicotes, prendendo-a ao colchão.
Grover tentou se levantar, mas cordas pularam também de sua cama de cetim preto, e o prenderam.
– N-não é l-l-legal! – gritou ele, a voz vibrando com a massagem de um milhão de mãos. – N-n-nada l-l-legal!
O gigante olhou para Annabeth, voltou-se para mim e arreganhou um sorriso.
– Quase. Droga.
Tentei me afastar, mas a mão dele se arremessou e me agarrou pela nuca.
– Opa, garoto. Não se preocupe. Vamos achar uma para você em um segundo.
– Solte meus amigos.
– Ah, certamente, eu vou. Mas vou ter de ajustá-los primeiro.
– O que quer dizer?
– Todas as camas têm exatamente um metro e oitenta, sabia? Seus amigos são baixinhos demais. Tenho de ajustá-los para servir nas camas.
Annabeth e Grover continuaram se debatendo.
– Não tolero medidas imperfeitas – resmungou Crosta. – Ergo!
Um novo conjunto de cordas pulou dos pés e da cabeceira da cama, enrolando-se nos tornozelos e axilas de Grover e Annabeth. As cordas começaram a se esticar, puxando meus amigos pelas duas extremidades.
– Não se preocupe – disse Crosta para mim. – É um servicinho de estiramento. Talvez uns oito centímetros a mais nas colunas deles. Podem até sobreviver. Agora, por que não achamos uma cama de que você goste, heim?
– Percy! – gritou Grover.
Minha cabeça estava a mil. Sabia que não conseguiria dominar sozinho aquele gigante vendedor de camas d'água. Ele quebraria meu pescoço antes mesmo que eu pegasse a espada.
– Seu nome de verdade não é Crosta, é? – perguntei.
– Na certidão é Procrusto – admitiu ele.
– O Esticador.
Lembrei-me da história: o gigante que tentara matar Teseu com excesso de hospitalidade a caminho de Atenas.
– Sim – disse o vendedor. – Mas quem é capaz de pronunciar Procrusto? É ruim para os negócios. Agora, "Crosta' um pode dizer.
– Tem razão. Soa muito bem. – Os olhos dele se iluminaram.
– Acha mesmo?
– Ah, sem dúvida – disse eu. – E o acabamento dessas camas? Fabuloso!
Ele abriu um enorme sorriso, mas os dedos não afrouxaram em meu pescoço.
– Digo isso aos meus fregueses. Sempre. Ninguém se preocupa em examinar o acabamento. Quantas lâmpadas de lava embutidas você já viu?
– Não muitas.
– Claro!
– Percy! – gritou Annabeth. – O que está fazendo?
– Não ligue para ela – disse eu a Procrusto. – Ela impossível.
O gigante riu.
– Todos os meus fregueses são. Nunca têm um metro e oitenta exato. Muito desatencioso. E depois se queixam do ajuste.
– O que você faz quando eles têm mais de um metro e oitenta?
– Ora, isso acontece sempre. É um ajuste simples.
Ele soltou meu pescoço, mas antes que eu pudesse reagir esticou o braço para trás de um balcão próximo e de lá tirou um enorme machado de bronze com lâmina dupla. Ele disse:
– É só centralizar o freguês o melhor possível e aparar o que estiver sobrando nas duas extremidades.
– Ah – falei, engolindo em seco. – Sensato.
– Estou tão satisfeito em cruzar com um freguês inteligente!
Agora as cordas estavam realmente esticando meus amigos. Annabeth estava ficando pálida. Grover fazia sons gorgolejantes, como um ganso estrangulado.
– Então, Crosta... – falei, tentando manter a voz despreocupada. Olhei de relance para a cama Lua-de-Mel Especial, em forma de coração. – Esta aqui tem mesmo estabilizadores dinâmicos para compensar o movimento ondulatório?
– É claro. Experimente.
– Sim, talvez eu experimente. Mas funcionaria também para um cara grande como você? Sem nenhuma ondulação?
– Garantido.
– Não acredito.
– Pode acreditar.
– Mostre.
Ele sentou com vontade na cama e deu uma palmadmha no colchão.
– Nenhuma ondulação. Viu?
Estalei os dedos.
– Ergo!
As cordas saltaram em volta de Crosta e o achataram no colchão.
– Ei! – gritou ele.
– Centralizar bem – falei.
As cordas se reajustaram ao meu comando. A cabeça inteira de Crosta ficou para fora da cabeceira. Os pés ficaram para fora na outra ponta.
– Não! – disse ele. – Espere! Era só uma demonstração.
Destampei Contracorrente.
– Alguns ajustezinhos...
Não tive nenhum escrúpulo quanto ao que estava prestes a fazer. Se Crosta não fosse humano, eu, de qualquer jeito, não poderia feri-lo. Se fosse um monstro, merecia ser transformado em pó por algum tempo.
– Você negocia duro – disse-me ele. – Dou-lhe trinta por cento de desconto nos modelos em exposição!
– Acho que vou começar com a parte de cima. – Ergui a espada.
– Sem entrada! Financiamento em seis meses sem juros!
Desci a espada. Crosta parou de fazer ofertas.
Cortei as cordas nas outras camas. Annabeth e Grover puseram-se em pé, gemendo e se encolhendo e me xingando muito.
– Vocês parecem mais altos – falei.
– Muito engraçado – disse Annabeth. – Da próxima vez seja mais rápido.
Olhei para o quadro de avisos atrás do balcão de Crosta. Havia uma propaganda do Serviço de Entregas Hermes e outra do Guia Completo dos Monstros na Área de Los Angeles – "As únicas Páginas Amarelas Monstruosas de que você vai precisar!".
Embaixo daquilo, um panfleto em laranja vivo dos Estúdios de Gravação M.A.C. oferecendo comissões por almas de heróis. "Estamos sempre a procura de novos talentos!" O endereço estava logo abaixo, com um mapa.
– Vamos – disse a meus amigos.
– Espere só um minuto – queixou-se Grover. – Fomos praticamente esticados até a morte!
– Então estão preparados para o Mundo Inferior – falei. – Fica apenas há uma quadra daqui.
Capítulo 18 - Annabeth usa a aula de adestramento
Estávamos nas sombras da Valência Boulevard, olhando para as letras douradas gravadas no mármore negro: ESTÚDIOS DE GRAVAÇÃO M.A.C.
Embaixo, impresso nas portas de vidro, PROIBIDA A ENTRADA DE ADVOGADOS, VAGABUNDOS E VIVENTES.
Já era quase meia-noite, mas o saguão estava iluminado e cheio de gente. Atrás do balcão da segurança estava sentado um guarda de aparência agressiva, com óculos escuros e um fone de ouvidos.
Virei-me para meus amigos.
– Certo. Vocês se lembram do plano.
– O plano – Grover engoliu seco. – Isso. Adoro o plano.
Annabeth disse:
– O que vai acontecer se o plano não funcionar?
– Sem pensamentos negativos.
– Certo – disse ela. – Estamos entrando na Terra dos Mortos e eu não devo ter
pensamentos negativos.
Tirei as pérolas do bolso, as três esferas cor de leite que a nereida me dera em Santa Monica. Elas não pareciam um recurso para o caso de algo dar errado.
Annabeth pôs a mão em meu ombro.
– Desculpe, Percy. Você tem razão, vamos conseguir. Vai dar tudo certo.
Ela deu uma cutucada em Grover.
– Ah, está certo! – concordou ele. – Chegamos até aqui. Vamos encontrar o raio-mestre e salvar sua mãe. Sem problemas.
Olhei para os dois e me senti realmente grato. Alguns minutos antes, eu quase os tinha feito ser esticados até a morte em camas d’água de luxo, e agora eles tentavam bancar os corajosos por minha causa, tentavam fazer com que me sentisse melhor.
Enfiei as pérolas de volta no bolso.
– Vamos chutar alguns traseiros no Mundo Inferior.
Entramos no saguão do M.A.C.
Alto-falantes embutidos tocavam uma música ambiente suave. O carpete e as paredes eram cinza-chumbo. Cactos cresciam nos cantos como mãos de esqueletos. Os móveis eram de couro preto, e todos os assentos estavam ocupados. Havia gente sentada em sofás, gente em pé, gente olhando pela janela ou aguardando o elevador. Ninguém se mexia, nem falava, não faziam nada. Com o canto do olho, eu podia vê-los muito bem, mas, se me concentrasse em qualquer um em particular, eles começavam a parecer... transparentes. Dava para ver através dos seus corpos.
O balcão da segurança ficava em cima de um degrau, portanto tínhamos de olhar para o alto para falar com o guarda.
Ele era alto e elegante, com pele na cor de chocolate e cabelo tingido de loiro, cortado em estilo militar. Usava armação de tartaruga e um terno de seda italiano que combinava com o cabelo. Uma rosa negra estava presa à lapela, embaixo de um crachá de prata.
Li o nome no crachá e olhei para ele perplexo.
– Seu nome é Quíron?
Ele se inclinou por cima da mesa. Não consegui ver nada em seus óculos exceto meu próprio reflexo, mas seu sorriso era doce e frio, como o de uma jiboia exatamente antes de devorar você.
– Que rapaz mais engraçadinho. – Ele tinha um sotaque estranho... inglês, talvez, mas como se tivesse aprendido inglês como segunda língua. – Diga-me, parceiro, eu pareço um centauro?
– N-não.
– Senhor – acrescentou ele suavemente.
– Senhor – falei.
Ele segurou o crachá e correu o dedo embaixo das letras.
– Consegue ler isto, parceiro? Aqui diz C-A-R-O-N-T-E. Diga comigo: CA-RON-TE.
– Caronte.
– Fantástico! Agora: senhor Caronte.
– Senhor Caronte – disse eu.
– Muito bem. – Ele se recostou. – Detesto ser confundido com aquele homem-cavalo. E agora, como posso ajudá-los, pequenos defuntos?
A pergunta dele me acertou o estômago como uma bola de beisebol. Olhei para Annabeth em busca de ajuda.
– Queremos ir para o Mundo Inferior – disse ela.
A boca de Caronte repuxou-se.
– Bem, isso é revigorante.
– É mesmo? – perguntou ela.
– Direto e honesto. Sem gritos. Sem "Deve haver algum engano, Sr. Caronte". – Ele nos olhou de cima a baixo. – Então, como vocês morreram?
Cutuquei Grover.
– Ah – disse ele. – Ahn... afogados... na banheira.
– Os três? – perguntou Caronte.
Nós assentimos.
– Que banheira grande. – Caronte pareceu levemente impressionado. – Suponho que vocês não têm moedas para passagem. Com adultos, vocês sabem, eu poderia debitar no cartão de crédito, ou acrescentar o preço da travessia na sua última conta de telefone. Mas com crianças... infelizmente, vocês nunca morrem preparadas. Acho que terão de ficar sentados por alguns séculos.
– Ah, mas nós temos moedas. – Pus três dracmas de ouro sobre o balcão, parte da provisão que eu encontrara na mesa do escritório de Crosta.
– Ora vejam... – Caronte umedeceu os lábios. – Dracmas de verdade. Não vejo uma dessas faz...
Seus dedos pairaram avidamente sobre as moedas. Estávamos muito perto.
Então Caronte me olhou. O olhar frio atrás dos óculos pareceu abrir um buraco em meu peito.
– Mas você não conseguiu ler meu nome direito. Você é disléxico, rapaz?
– Não. Sou um morto.
Caronte inclinou-se para a frente e deu uma cheirada.
– Você não está morto. Eu devia saber. É um filhote de deus.
– Temos de chegar ao Mundo Inferior – insisti.
Caronte rosnou no fundo da garganta.
No mesmo instante, todas as pessoas na sala de espera se levantaram e começaram a andar de um lado para outro, agitadas, acendendo cigarros, passando as mãos pelos cabelos ou olhando para os relógios de pulso.
– Vão embora enquanto podem – disse-nos Caronte. – Vou ficar com estas moedas e esquecer que os vi.
Ele começou a esticar a mão para as moedas, mas eu as puxei de volta.
– Sem serviço, sem gorjeta. – Tentei parecer mais valente do que me sentia. Caronte rosnou de novo – um som profundo, de gelar sangue. Os espíritos dos mortos começaram a bater nas portas do elevador.
– É uma pena – suspirei. – Tínhamos mais para oferecer.
Ergui a sacola inteira com o tesouro de Crosta. Tirei um punhado de dracmas e deixei as moedas escorregarem entre os dedos. O rosnado de Caronte se transformou em algo mais parecido com um ronronar de leão.
– Acha que pode me comprar, filhote de deus? Ahn... curiosidade, quanto você tem aí?
– Muito – falei. – Aposto que Hades não lhe paga o bastante por um trabalho tão duro.
– Ah, você não sabe nem da metade. Iria gostar de ser babá desses espíritos o dia inteiro? Sempre com "Por favor, não me deixe ficar morto" ou "Por favor, deixe-me atravessar de graça”. Não tenho um aumento há três mil anos. Acha que ternos como este custam barato?
– Você merece coisa melhor – concordei. – Algum reconhecimento. Respeito. Bom salário.
A cada palavra, eu empilhava outra moeda de ouro no balcão. Caronte baixou os olhos para o paletó de seda italiana, como se estivesse se imaginando com algo ainda melhor.
– Devo dizer, rapaz, que a gente está começando a falar a mesma língua. Um pouco.
Empilhei mais algumas moedas.
– Eu poderia mencionar um aumento de salário quando estiver falando com Hades.
Ele suspirou.
– Bem, o barco já está quase cheio. Poderia muito bem encaixar vocês três e zarpar.
Ele se pôs de pé, pegou nosso dinheiro e disse:
– Venham comigo.
Abrimos caminho entre a multidão de espíritos que aguardavam, os quais começaram a puxar nossas roupas como o vento, as vozes sussurrando coisas que eu não podia distinguir. Caronte empurrou-os do caminho, resmungando:
– Parasitas.
Ele nos escoltou até o elevador, que já estava apinhado de algumas dos mortos, todos segurando um cartão de embarque verde. Caronte agarrou dois espíritos que tentavam entrar conosco e os empurrou de volta para o saguão.
– Muito bem. Agora, ninguém comece a ter ideias enquanto eu estiver fora – anunciou ele para a sala de espera. – E se alguém tirar minha estação de música de sintonia novamente, farei vocês ficarem aqui por outro milênio. Entendido?
Ele fechou as portas. Enfiou um cartão-chave em uma fenda no painel do elevador e começamos a descer.
– O que acontece com os espíritos que ficam esperando no saguão? – perguntou Annabeth.
– Nada – disse Caronte.
– Por quanto tempo?
– Para sempre, ou até eu me sentir generoso.
– Ah – disse ela. – Isso é... justo.
Caronte ergueu uma sobrancelha.
– Quem disse que a morte era justa, mocinha? Espere até chegar a sua vez. Você vai morrer em pouco tempo, no lugar está indo.
– Vamos sair vivos – falei.
– Ah.
Tive de repente uma sensação de vertigem. Não estávamos mais indo para baixo, mas para a frente. O ar ficou enevoado. Os espíritos à minha volta começaram a mudar de forma. Suas roupas modernas tremiam e se transformavam em mantos cinzentos com capuz. O piso do elevador começou a oscilar.
Pisquei com força. Quando abri os olhos, o terno creme italiano de Caronte fora substituído por um longo manto negro. Seus óculos de tartaruga haviam desaparecido. Onde deviam estar os olhos havia órbitas vazias – como os olhos de Ares, só que os de Caronte eram totalmente escuros, repletos de noite, trevas e desespero. Ele me viu olhando e disse:
– O quê?
– Nada – consegui dizer.
Achei que ele estivesse sorrindo, mas não era isso. A pele de seu rosto estava ficando transparente, deixando que eu visse até o crânio.
O chão continuou oscilando.
Grover disse:
– Acho que estou ficando enjoado.
Quando pisquei de novo, o elevador não era mais um elevador. Estávamos dentro de uma barcaça de madeira. Caronte usava uma vara para nos mover ao longo de um rio escuro, cheio de óleo, com ossos, peixes mortos e outras coisas estranhas girando na superfície... bonecas de plástico, cravos esmagados, diplomas encharcados com bordas douradas.
– O rio Styx – murmurou Annabeth. – É tão...
– Poluído – disse Caronte. – Há milhares de anos vocês, seres humanos, quando o atravessam, jogam tudo nele... esperanças, sonhos, desejos que jamais se tornam realidade. Um modo irresponsável de tratar seu lixo, se querem saber.
A névoa subia em espirais da água imunda. Acima de nós, quase perdido nas sombras, havia um teto de estalactites. A frente, a costa distante brilhava com uma luz esverdeada, a cor do veneno.
O pânico obstruiu minha garganta. O que eu estava fazendo ali? Aquelas pessoas ao meu redor... estavam mortas.
Annabeth agarrou minha mão. Em circunstâncias normais, isso teria me embaraçado, mas entendi como ela se sentia. Queria se assegurar de que mais alguém estava vivo naquele barco.
Percebi que eu murmurava uma oração, embora não soubesse bem para quem estava rezando. Ali embaixo só um deus importava, e era ele que eu fora confrontar.
A praia do Mundo Inferior surgiu à vista. Rochas escarpadas e areia vulcânica negra se estendiam terra adentro por cerca de cem metros até um muro alto de pedra, que se prolongava para os lados até onde a vista podia alcançar. De algum lugar por perto nas sombras verdes, veio um som, reverberando nas pedras – o uivo de um grande animal.
– O velho Três-Caras está com fome – disse Caronte. Seu sorriso se tornou esquelético à luz esverdeada. – Má sorte para vocês, filhotes de deuses.
O fundo do nosso barco deslizou sobre a areia preta. Os mortos começaram a desembarcar. Uma mulher segurando a mão de uma menininha. Um casal de idosos capengando lentamente, de braços. Um menino que não era mais velho que eu arrastava os pés em silêncio em seu manto cinzento.
Caronte disse:
– Eu lhe desejaria sorte, parceiro, mas isso não existe por aqui. Lembre-se, não deixe de mencionar meu aumento de salário.
Ele contou nossas moedas de ouro em sua bolsa, depois a vara. Gorjeou algo que parecia uma canção de Barry Manilow enquanto empurrava a barcaça de volta através do rio.
Seguimos os espíritos por um caminho já muito percorrido.
Não sei muito bem o que estava esperando – os Portões do Céu, uma ponte levadiça grande e escura ou coisa assim. Mas a entrada para o Mundo Inferior parecia uma mistura de segurança de aeroporto com a autoestrada de New Jersey.
Havia três entradas separadas embaixo de um enorme arco negro que dizia VOCÊ ESTÁ ENTRANDO EM ÉREBO. Em cada entrada havia um detector de metais com câmeras de segurança instaladas no alto. Depois disso, havia cabines de pedágio operadas por espíritos como Caronte.
Os uivos de animal faminto eram agora muito altos, mas eu não conseguia ver de onde vinham. O cão de três cabeças, Cérbero, que deveria guardar a porta do Hades, não estava em lugar nenhum.
Os mortos formaram três filas, duas identificadas como ATENDENTE DE SERVIÇO e uma como MORTE ESPRESSA. A fila MORTE EXPRESSA estava avançando sem parar. As outras duas se arrastavam.
– O que você imagina? – perguntei a Annabeth.
– A fila rápida deve ir diretamente para os Campos Asfódelos – disse ela. – Sem contestação. Eles não querem se arriscar ao julgamento do tribunal, porque pode ir contra eles.
– Existe um tribunal para gente morta?
– Sim. Três juízes. Eles se revezam na magistratura. O rei Minos, Thomas
Jefferson, Shakespeare... pessoas assim. Às vezes olham para uma vida e concluem que aquela pessoa precisa de uma recompensa especial: os Campos Elísios. Às vezes decidem por um castigo. Mas a maioria das pessoas, bem, elas apenas viveram. Nada de especial, nem bom nem mau. Então vão para os Campos Asfódelos.
– E fazem o quê?
Grover disse:
– Imagine-se em um campo de trigo no Kansas. Para sempre.
– Dureza – disse eu.
– Não tanto quanto aquilo – murmurou Grover. – Olhe.
Uma dupla de vultos de mantos negros havia puxado um espírito para o lado e o estava revistando junto à mesa da segurança. O rosto do morto parecia vagamente familiar.
– Ele é o pregador que saiu no noticiário, está lembrado? – perguntou Grover.
– Ah, sim – eu lembrava. Nós o tínhamos visto na tevê uma ou duas vezes no dormitório da Academia Yancy. Era um tele-evangelista chato do norte do estado de Nova York que arrecadara milhões de dólares para orfanatos e depois foi pego gastando o dinheiro em artigos para a sua mansão, como assentos de privada folheados a ouro e um campo de minigolfe. Morrera numa perseguição da polícia quando seu "Lamborghini abençoado" despencou de um penhasco.
– O que estão fazendo com ele? – perguntei.
– O castigo especial de Hades – adivinhou Grover. – As pessoas realmente más recebem atenção particular dele quando chegam. As Fúr... as Benevolentes vão preparar uma tortura para ele.
Pensar nas Fúrias me fez estremecer. Percebi que naquele momento estava no território delas. A velha Sra. Dodds devia estar lambendo os beiços de expectativa.
– Mas se ele é um pregador – falei – e acredita em um inferno diferente...
Grover encolheu os ombros.
– Quem disse que ele está vendo este lugar do mesmo modo que nós? Os seres humanos veem o que querem ver. Vocês são muito teimosos... ahn, persistentes, nisso.
Chegamos mais perto dos portões. Os uivos ali eram tão altos que sacudiam o chão embaixo de meus pés, mas ainda assim eu não conseguia perceber de onde vinham. Então, cerca de quinze metros à nossa frente, a névoa verde tremulou. Exatamente no lugar onde o caminho se dividia em três estava um monstro enorme e indistinto.
Eu não o tinha visto antes porque ele era meio transparente, como os mortos. Até se mexer, sua imagem se fundia com o quer que estivesse atrás dele. Somente os olhos e os dentes pareciam sólidos. Ele estava me encarando.
Meu queixo caiu. Tudo o que pude pensar em dizer foi:
– É um rottweiler.
Sempre imaginara Cérbero como um grande mastim preto. Mas ele era obviamente um rottweiler de raça pura, a não ser, é claro, por ter duas vezes o tamanho de um mamute, ser quase invisível e ter três cabeças.
Os mortos andavam na direção dele – sem nenhum medo. As filas das placas ATENDENTE EM SERVIÇO se separavam, cada uma para um lado do monstro. Os espíritos de MORTE EXPRESSA caminhavam direto por entre as patas da frente e por baixo da barriga, o que podiam fazer sem sequer se abaixar.
– Estou começando a vê-lo melhor – murmurei. – Por que será?
– Acho... – Annabeth umedeceu os lábios. – Sinto muito, mas acho que é porque estamos mais perto de ser pessoas mortas.
A cabeça do meio do cão se esticou em nossa direção. Ele farejou o ar e rosnou.
– Ele consegue farejar os vivos – falei.
– Mas está tudo bem – disse Grover, trêmulo ao meu lado. Porque temos um plano.
– Certo – disse Annabeth. Nunca tinha ouvido a voz dela soar tão baixa. – Um plano.
Avançamos na direção do monstro. A cabeça do meio rosnou para nós, depois latiu tão alto que minhas pupilas chacoalharam.
– Você consegue entender? – perguntei a Grover.
– Ah, sim – disse ele. – Eu consigo entender.
– O que ele está dizendo?
– Não acredito que os seres humanos possuam um palavrão tão grande assim.
Peguei um pedaço de madeira que tinha na mochila – um pé de cama que eu tinha arrancado de um modelo em exposição de Crosta, a Safári Deluxe. Segurei-o no alto e tentei canalizar pensamentos caninos felizes para o Cérbero – comerciais de ração, cães engraçadinhos, postes. Tentei sorrir, como se não estivesse prestes a morrer.
– Ei, garotão – gritei. – Aposto que eles não brincam muito com você aqui.
"GRRRRRRRRRAUl"
– Bom menino – falei, fraquejando.
Acenei o bastão. A cabeça do meio do cão acompanhou o movimento. As outras duas fixaram os olhos em mim, ignorando completamente os espíritos. Eu tinha toda a atenção de Cérbero. Não sabia muito bem se isso era bom.
– Vá buscar! – atirei o bastão para as sombras, um lançamento perfeito. Ouvi o
tibum! no Styx.
Cérbero me olhou, feroz, nada impressionado. Os olhos eram cheios de ódio e frios. Fim do plano.
O monstro agora produzia um novo tipo de rosnado, mais profundo nas suas três gargantas.
– Ahn – disse Grover. – Percy?
– Sim?
– Apenas achei que você gostaria de saber.
– Sim?
– Cérbero... Ele está dizendo que temos dez segundo rezar para o deus que escolhermos. Depois disso... bem... ele está com fome.
– Espere! – disse Annabeth. Ela começou a revirar sua mochila.
Epa, pensei.
– Cinco segundos – disse Grover. – Corremos agora?
Annabeth surgiu com uma bola de borracha vermelha do tamanho de uma grapefruit. A etiqueta dizia PARQUE AQUÁTICO AQUALÂNDIA – DENVER, COLORADO.
Antes que eu pudesse impedi-a, ergueu a bola e marchou na direção de Cérbero. Ela gritou:
– Está vendo a bola? Quer a bola, Cérbero? Senta!
Cérbero parecia tão perplexo quanto nós.
As três cabeças se inclinaram de lado. Seis narinas se dilataram.
– Senta! – gritou Annabeth outra vez.
Eu tinha certeza de que a qualquer momento ela se transformaria no maior biscoito para cachorro do mundo.
Em vez disso, porém, Cérbero lambeu seus três pares de lábios, sacudiu o traseiro e sentou, esmagando imediatamente uma dúzia de espíritos que passavam por baixo dele na fila MORTE EXPRESSA. Os espíritos produziram um chiado abafado ao se dissipar, como ar escapando de pneus.
– Bom menino! – disse Annabeth.
E atirou a bola para Cérbero. Ele a agarrou com a boca do meio. A bola mal tinha tamanho suficiente para ele morder, e as outras cabeças começaram a avançar na do meio, tentando pegar o novo brinquedo.
– Solta! – ordenou Annabeth.
As cabeças de Cérbero pararam de brigar e olharam para ela. A bola estava presa entre dois dos seus dentes como um pedacinho de chiclete. Ele soltou um lamento alto e assustador, depois largou a bola, gosmenta e quase rasgada no meio, aos pés de Annabeth.
– Bom menino. – Annabeth pegou a bola, ignorando a baba de monstro.
Ela se virou para nós.
– Vão, agora. Fila da MORTE EXPRESSA... essa anda mais rápido.
– Mas... – argumentei.
– Agora! – ordenou ela, no mesmo tom que estava usando com o cão.
Grover e eu avançamos devagarzinho, cautelosos. Cérbero começou a rosnar.
– Fica! – ordenou Annabeth ao monstro. – Se quer a bola, fica!
Cérbero ganiu, mas ficou onde estava.
– E você? – perguntei a Annabeth quando passamos por ela.
– Sei o que estou fazendo, Percy – murmurou ela. – Pelo menos, tenho quase certeza...
Grover e eu seguimos por entre as pernas do monstro.
Por favor, Annabeth, eu rezei. Não o mande sentar de novo.
Conseguimos passar. Cérbero não era menos assustador visto de trás.
– Bom cachorro! – disse Annabeth.
Ela ergueu a bola vermelha esfrangalhada e, provavelmente, chegou à mesma conclusão que eu – se recompensasse Cérebro, não restaria nada para mais um truque.
Assim mesmo, ela jogou a bola. A boca esquerda do monstro a agarrou imediatamente, só para ser atacada pela cabeça do meio enquanto a cabeça da direita gemia em protesto.
Enquanto o monstro estava distraído, Annabeth marchou energicamente por baixo da barriga dele e juntou-se a nós perto do detector de metais.
– Como fez aquilo? – perguntei, admirado.
– Aula de adestramento – disse ela sem fôlego, e fiquei surpreso ao ver que havia lágrimas em seus olhos. – Quando eu pequena, na casa do meu pai, nós tínhamos um dobermann...
– Não tem importância – disse Grover puxando minha camisa. – Vamos!
Estávamos a ponto de disparar pela fila de MORTE EXPRESSA quando Cérbero gemeu de dar dó, com todas as três bocas. Annabeth parou.
Cérbero arfava ansioso, a pequenina bola vermelha despedaçada em uma lagoa de baba a seus pés.
– Bom menino – disse Annabeth, mas sua voz pareceu melancólica e insegura.
As cabeças do monstro se inclinaram, como se ele estivesse preocupado com ela.
– Logo vou trazer uma bola nova para você – prometeu Annabeth, insegura. – Você quer?
O monstro choramingou. Eu não precisava falar língua de cachorro para saber que Cérbero ainda estava esperando a bola.
– Bom cachorro. Venho logo visitar você. Eu... eu prometo. – Annabeth virou-se para nós. – Vamos.
Grover e eu passamos pelo detector de metais, que imediatamente soou e disparou a piscar luzes vermelhas.
"Pertences não autorizados! Mágica detectada!"
Cérbero começou a latir.
Nós nos lançamos pelo portão MORTE EXPRESSA, o que disparou ainda mais alarmes, e corremos para dentro do Mundo Inferior. Alguns minutos depois, estávamos nos escondendo, sem fôlego, no tronco apodrecido de uma imensa árvore negra, enquanto os espíritos da segurança passavam correndo, berrando pela ajuda das Fúrias.
Grover murmurou:
– Bem, Percy, o que aprendemos hoje?
– Que cães de três cabeças preferem bolas de borracha a pedaços de pau?
– Não – disse Grover. – Aprendemos que seus planos são muito, muito ruins!
Eu não tinha essa certeza. Talvez fosse o caso de eu e Annabeth termos tido a ideia certa. Mesmo ali, no Mundo Inferior, todo mundo – até mesmo os monstros – precisa de um pouco de atenção de vez em quando.
Pensei nisso enquanto esperávamos que os espíritos passassem. Fingi que não vi Annabeth enxugar uma lágrima ao ouvir o lamento triste de Cérbero a distância, sentindo falta da nova amiga.
Capítulo 19 - De certa forma, descobrimos a verdade
Imagine a maior aglomeração de gente que você já viu em um show, um campo de futebol lotado com um milhão de fãs. Agora imagine um campo um milhão de vezes maior do que esse, lotado, e imagine que a energia elétrica falhou e não há barulho, não há luz, nem aquelas bolas gigantes quicando por cima da multidão. Algo de trágico aconteceu nos bastidores. Uma massa sussurrante de gente fica simplesmente vagueando nas sombras sem direção, esperando um show que nunca vai começar. Se é capaz de imaginar isso, tem uma boa ideia de como são os Campos de Asfódelos. A grama preta tinha sido pisoteada por eras de pés mortos. Um vento morno e úmido soprava como o hálito de um pântano. Árvores negras – Grover me disse que eram choupos – cresciam em grupos aqui e ali. O teto da caverna era tão alto acima de nós que poderia passar por uma massa de nuvens de tempestade, a não ser pelas estalactites, que brilhavam em um cinza pálido e pareciam malvadamente pontudas. Tentei não imaginar que poderiam cair sobre nós a qualquer momento, mas havia várias delas salpicadas ao redor, que caíram e empalaram a si mesmas na grama preta. Acho que os mortos não precisavam se preocupar com pequenos riscos como ser espetados por estalactites do tamanho de foguetes. Annabeth, Grover e eu tentamos nos misturar com a multidão permanecendo de olho nos espíritos da segurança. Não pude deixar de procurar rostos familiares entre os espíritos de Asfódelos, mas é difícil olhar para os mortos. Seus rostos tremulam. Todos parecem ligeiramente zangados ou confusos. Eles até nos veem e falam, mas a voz soa como trepidações, como o chiado de morcegos. Depois que eles percebem que você não consegue entendê-los, fecham a cara e se afastam. Os mortos não são assustadores. São apenas tristes. Arrastamo-nos, seguindo a fila de recém-chegados que serpenteava desde os portões principais em direção a uma grande tenda, negra com uma faixa que dizia: JULGAMENTOS PARA O ELÍSIO E PARA A DANAÇÃO ETERNA Bem-vindos, Recém-Falecidos! Do fundo da tenda saíam duas filas muito menores. À esquerda, espíritos flanqueados por espíritos maligno de segurança marchavam por um caminho pedregoso rumo aos Campos de Punição, que incandesciam e fumegavam a distância, uma vastidão desértica e rachada com rios de lava e campos minados, e quilômetros de arame farpado separando as diferentes áreas de tortura. Mesmo de longe, pude ver pessoas sendo perseguidas por cães infernais, queimadas na fogueira, forçadas a correr nuas por plantações de cactos ou ouvir música de ópera. Pude apenas distinguir uma colina minúscula com o vulto do tamanho de uma formiga de Sísifo lutando para empurrar sua pedra até o topo. E vi também torturas piores – coisas que nem quero descrever. A fila que vinha do lado direito do pavilhão dos julgamentos era muito melhor. Dava num pequeno vale cercado de muros – uma comunidade com portões, que parecia ser a única parte feliz do Mundo Inferior. Além do portão de segurança havia belas casas de todos os períodos da história, vilas romanas, castelos medievais e mansões vitorianas. Flores de prata e ouro floresciam nos campos. A grama ondulava nas cores do arco-íris. Dava para ouvir os risos e sentir o cheiro de churrasco. Elísio. No meio daquele vale havia um brilhante lago azul, com três pequenas ilhas como um hotel de lazer nas Bahamas. As Ilhas dos Abençoados, para pessoas que escolheram renascer três vezes, e três vezes conquistaram o Elísio. No mesmo instante eu soube que era para lá que queria ir quando morresse.
– É isso mesmo – disse Annabeth como se estivesse lendo meus pensamentos. – Este é o lugar para os heróis.
Mas percebi como havia poucas pessoas no Elísio, como era minúsculo em comparação com os Campos de Asfódelos ou até os Campos da Punição. Portanto, poucas pessoas se davam bem em suas vidas. Era deprimente. Deixamos o pavilhão dos julgamentos e nos aprofundamos mais nos Campos de Asfódelos. Ficou mais escuro. As cores se esvaíram das nossas roupas. As multidões de espíritos tagarelas começaram a rarear. Depois de alguns quilômetros de caminhada, passamos a ouvir guinchos familiares à distância. Agigantando-se longe estava um palácio de obsidiana negra, brilhante. Acima dos baluartes rodopiavam três criaturas escuras semelhantes a morcegos: as Fúrias. Tive a sensação de que nos aguardavam.
– Talvez seja tarde demais para voltar atrás – disse Grover com tristeza.
– Vai dar tudo certo. – Tentei parecer confiante.
– Talvez devêssemos procurar em alguns dos outros lugares primeiro – sugeriu Grover. – Como o EIísio, por exemplo...
– Venha, menino-bode. – Annabeth agarrou-lhe o braço.
Grover ganiu. Seus tênis criaram asas e as pernas saltaram para a frente, puxando-o para longe de Annabeth. Ele aterrissou de costas na grama.
– Grover – ralhou Annabeth. – Pare de embromar.
– Mas eu não... – Ele ganiu de novo. Os tênis estavam agora batendo as asas como loucos. Levitaram do chão e começaram a arrastá-lo para longe de nós. – Maia! – gritou ele, mas a palavra mágica parecia não fazer mais efeito. – Maia, agora mesmo! Um-nove-zero! Socorro!
Eu me refiz da perplexidade e tentei agarrar a mão de Grover, mas era tarde demais. Ele estava ganhando velocidade, escorregando colina abaixo como um trenó. Corremos atrás dele. Annabeth gritou:
– Desamarre os tênis!
Foi uma ideia esperta, mas acho que isso não é tão fácil quando os seus sapatos o estão arrastando para a frente a toda velocidade. Grover tentou sentar, mas não conseguiu alcançar os cadarços. Continuamos correndo atrás dele, tentando mantê-lo à vista enquanto disparava por entre as pernas dos espíritos que matraqueavam para ele, aborrecidos. Eu tinha certeza de que Grover iria passar direto dos portões do palácio de Hades, mas de repente os tênis desviaram para a direita e o arrastaram na direção oposta.
A ladeira ficou mais íngreme. Grover ganhou velocidade. Annabeth e eu tivemos de correr a toda para acompanhá-lo. As paredes da caverna se estreitaram dos dois lados, e me dei conta de que estávamos entrando em algum tipo de túnel lateral. Não havia mais grama preta nem árvores, apenas pedras sob os pés, e a luz pálida das estalactites acima.
– Grover! – gritei, minha voz reverberando. – Segure em alguma coisa!
– O quê? – gritou ele de volta.
Estava agarrando os pedregulhos, mas não havia nada grande o bastante para reduzir sua velocidade. O túnel ficou mais escuro e frio. Os pelos dos meus braços se arrepiaram. O cheiro ali embaixo me deixava era nauseado. Me fez pensar em coisas que nem devia saber – sangue derramado sobre um antigo altar de pedra, o hálito fétido de um assassino. Então vi o que estava à nossa frente e, de repente, estanquei. O túnel se alargava para uma enorme caverna escura, e no meio havia um abismo do tamanho de um quarteirão da cidade. Grover estava escorregando direto para a borda.
– Venha, Percy! – gritou Annabeth, puxando-me pelo pulso.
– Mas aquilo...
– Eu sei! – gritou ela. – O lugar que você descreveu de seu sonho! Mas Grover vai cair se não o pegarmos.
Ela estava certa, é claro. O apuro de Grover fez com que me mexesse de novo. Ele estava gritando, arranhando o chão, mas os tênis alados continuavam a arrastá-lo em direção ao poço, e não parecia possível chegar até ele a tempo. O que o salvou foram seus cascos. Os tênis voadores sempre ficaram folgados nele, e quando Grover chocou-se com uma grande pedra, seu tênis esquerdo saiu voando e disparou para as trevas, abismo abaixo. O tênis direito continuou a puxá-lo, mas não tão depressa. Grover conseguiu reduzir a velocidade agarrando-se à grande pedra e usando-a como âncora. Estava a três metros da borda do abismo quando nós pegamos e o puxamos de volta ladeira acima. O outro tênis alado se desprendeu, circulou em volta de nós furiosamente e chutou nossas cabeças em protesto antes de voar para dentro do abismo a fim de juntar-se a seu par. Todos desabamos exaustos sobre os pedregulhos de obsidiana. Meus membros pareciam feitos de chumbo. Até minha mochila parecia mais pesada, como se alguém a tivesse enchido de pedras. Grover estava muito arranhado. Suas mãos sangravam. As pupilas dos olhos se transformaram em fendas, no estilo dos bodes como sempre acontecia quando ele estava aterrorizado.
– Eu não sei como... – arquejou ele. – Eu não...
– Espere – falei. – Escute. – Eu tinha ouvido algo. Um sussurro profundo na escuridão. Mais alguns segundos, e Annabeth disse:
– Percy, este lugar...
– Psiu. – Fiquei em pé. O som estava ficando mais alto, uma voz murmurante, malévola, vinda de longe, muito longe abaixo de nós. Vinda do abismo. Grover sentou-se.
– O... o que é esse ruído?
Agora Annabeth também ouvira. Pude ver em seus olhos.
– Tártaro. A entrada para o Tártaro.
Destampei Anaklusmos. A espada de bronze se expandiu, brilhando no escuro, e a voz maligna pareceu vacilar, só por um momento, antes de retomar seu canto. Eu agora quase conseguia distinguir palavras, palavras muito, muito antigas, ainda mais antigas que o grego. Como se...
– Mágica – falei.
– Temos de dar o fora daqui – disse Annabeth.
Juntos, arrastamos Grover para cima dos cascos e começamos a voltar pelo túnel. Minhas pernas não se moviam depressa o bastante. Minha mochila pesava. A voz ficou mais alta e irada atrás de nós, e desandamos a correr. Bem na hora. Uma rajada fria de vento nos aspirou pelas costas, como se o abismo inteiro estivesse inalando. Por um momento aterrorizante eu perdi o controle, e meus pés começaram a escorregar nos pedregulhos. Se estivéssemos mais perto da borda, teríamos sido sugados para dentro. Continuamos fazendo força para a frente e finalmente chegamos ao topo do túnel, onde a caverna se abria para os Campos de Asfódelos. O vento parou. Um lamento de indignação ecoou no fundo. Alguma coisa não estava feliz por termos escapado.
– O que era aquilo? – ofegou Grover quando desabamos na relativa segurança de um bosque de choupos negros – Um dos bichinhos de estimação de Hades?
Annabeth e eu nos entreolhamos. Eu podia ver que ela acalentava uma ideia, provavelmente a mesma que tivera durante a viagem de táxi a Los Angeles, mas estava apavorada demais para dividi-la comigo. Isso já era o bastante para me aterrorizar. Pus a tampa na minha espada, pus a caneta de volta no bolso.
– Vamos andando. – Olhei para Grover. – Consegue andar?
Ele engoliu em seco.
– Sim, com certeza. Nunca gostei muito daqueles tênis mesmo.
Ele tentou parecer valente, mas estava tremendo tanto quanto Annabeth e eu. O que quer que estivesse naquele abismo, não era o bichinho de estimação de ninguém. Era visivelmente antigo e poderoso. Nem mesmo Equidna me dera aquela sensação. Fiquei quase aliviado de dar as costas para aquele túnel e me dirigir para o palácio de Hades. Quase.
As Fúrias rodeavam os baluartes, lá no alto, nas trevas. As muralhas externas da fortaleza brilhavam em negro e os portões de bronze com dois andares de altura estavam escancarados.
De perto, vi que as gravações nos portões eram cenas de morte. Algumas de tempos modernos – uma bomba atômica explodindo sobre uma cidade, uma trincheira cheia de soldados usando máscaras de gás, uma fila de africanos vítimas da fome aguardando com tigelas vazias – mas todas pareciam ter sido gravadas no bronze havia milhares de anos. Fiquei pensando se estava olhando para profecias que se tornaram realidade. Dentro do pátio havia o jardim mais estranho que já vi. Cogumelos multicoloridos, arbustos venenosos e plantas luminosas fantasmagóricas cresciam sem a luz do sol. Gemas preciosas supriam a falta de flores, pilhas de rubis grandes como meu punho, aglomerados de diamantes brutos. Aqui e ali, como convidados de uma festa que foram congelados, havia estátuas de jardim da Medusa – crianças, sátiros e centauros petrificados – todos sorrindo grotescamente. No centro do jardim havia um pomar de romãzeiras, suas flores alaranjadas brilhando como néon no escuro.
– O jardim de Perséfone – disse Annabeth. – Continue andando.
Entendi por que ela quis seguir andando. O cheiro ácido daquelas romãs era quase irresistível. Tive um súbito desejo de comê-las, mas então me lembrei da história de Perséfone. Uma mordida de um alimento do Mundo Inferior e nunca mais poderíamos sair. Puxei Grover para longe, para impedi-lo de colher uma delas, grande e suculenta. Subimos os degraus do palácio, entre colunas negras, passando por um pórtico de mármore negro, para dentro da casa de Hades. O vestíbulo tinha um piso de bronze polido que parecia ferver à luz refletida das tochas. Não havia teto, apenas o teto da caverna muito acima. Acho que eles nunca precisaram se preocupar com chuva aqui embaixo. Todas as portas laterais eram guardadas por um esqueleto com trajes militares. Alguns usavam armaduras gregas, outros, uniformes ingleses de casacas vermelhas, e havia ainda os que vestiam roupas camufladas com bandeiras americanas esfarrapadas nos ombros. Carregavam lanças, mosquetes ou fuzis. Nenhum deles nos incomodou, mas suas órbitas ocas nos seguiram enquanto andávamos pelo vestíbulo em direção ao grande conjunto de portas no extremo oposto.
Dois esqueletos de fuzileiros navais americanos guardavam as portas. Eles sorriram para nós, com lançadores de granadas atravessadas no peito.
– Sabem de uma coisa – murmurou Grover – aposto que Hades não tem problemas para despachar vendedores de porta a porta.
Minha mochila agora pesava uma tonelada. Eu não conseguia imaginar por quê. Quis abri-la, verificar se por acaso havia colhido alguma bola de boliche perdida, mas aquele não era o momento.
– Bem, gente – disse. – Acho que devemos... bater?
Um vento quente soprou pelo corredor e as portas se abriram. Os guardas deram um passo para o lado.
– Acho que isso significa entrez-vous – disse Annabeth. Lá dentro a sala era exatamente como em meu sonho, só que dessa vez o trono de Hades estava ocupado. Era o terceiro deus que eu conhecia, mas o primeiro que realmente me impressionava como deus. Para início de conversa, ele tinha pelo menos três metros de altura, e usava mantos de seda preta e uma coroa de ouro trançado. Sua pele era branca como a de um albino, o cabelo comprido até os ombros era preto-azeviche. Não era corpulento como Ares, mas irradiava força. Reclinava-se em seu trono de ossos humanos fundidos parecendo flexível, elegante e perigoso como uma pantera.
No mesmo instante tive a sensação de que ele deveria dar as ordens. Sabia mais do que eu. Devia ser meu mestre. Então disse a mim mesmo para dar o fora. A aura de Hades estava me afetando, assim como acontecera com a de Ares. O Senhor dos Mortos lembrava retratos que eu tinha visto de Adolf Hitler, ou Napoleão, ou dos líderes terroristas que controlam os homens-bomba. Hades tinha o mesmo olhar intenso, o mesmo tipo de carisma hipnotizador e maligno.
– Você é corajoso de vir até aqui, Filho de Poseidon – disse ele com uma voz untuosa. – Depois do que me fez, você é muito valente, sem dúvida. Ou talvez seja simplesmente muito tolo.
Um entorpecimento se insinuou nas minhas juntas, tentando-me a deitar e tirar uma pequena soneca aos pés de Hades. Queria me enroscar ali e dormir para sempre. Lutei contra a sensação e dei um passo à frente. Sabia o que tinha de dizer.
– Senhor e tio, trago dois pedidos.
Hades ergueu uma sobrancelha. Quando ele chegou mais para a frente em seu trono, rostos sombrios apareceram nas dobras dos seus mantos negros, rostos atormentados, como se o traje fosse feito de almas dos Campos da Punição pegas ao tentar escapar, costuradas umas nas outras. Minha porção transtorno do déficit de atenção se perguntou se o resto das roupas dele era feito do mesmo modo. Que coisas horríveis alguém teria de fazer em vida para merecer ser parte da roupa de baixo de Hades?
– Só dois pedidos? – disse Hades. – Criança arrogante. Como se você já não tivesse recebido o bastante. Fale, então. Acho divertido esperar um pouco para fulminar você.
Engoli em seco. Aquilo estava indo mais ou menos tão bem quanto eu temia. Relanceei para o trono menor, vazio, ao lado do de Hades. Tinha a forma de uma flor negra, decorada em ouro. Desejei que a rainha Perséfone estivesse ali. Lembrei-me de algo nos mitos sobre como ela podia acalmar os humores do marido. Mas era verão. É claro que Perséfone estaria acima no mundo de luz com mãe, a deusa da agricultura, Deméter. Suas visitas, e não a inclinação do planeta, criavam as estações. Annabeth pigarreou. Seu dedo me cutucou nas costas.
– Senhor Hades – disse eu. – Olhe, senhor, não pode haver uma guerra entre os deuses. Isso seria... ruim.
– Realmente ruim – acrescentou Grover, querendo ajudar. – Devolva o raio-mestre de Zeus para mim – disse eu. – Por favor, senhor, deixe-me levá-lo para o Olimpo.
Os olhos de Hades brilharam perigosamente.
– Você se atreve a continuar com essa farsa, depois de tudo o que fez?
Dei uma olhada para os meus amigos atrás de mim. Pareciam tão confusos quanto eu.
– Ahn... tio – falei. – Você fica dizendo "depois de tudo o que você fez". O que foi, exatamente, que eu fiz?
A sala do trono tremeu com tanta força que, provavelmente, o impacto foi sentido lá em cima, em Los Angeles. Fragmentos de rocha caíram do teto da caverna. Portas se abriram violentamente em todas as paredes, e guerreiros esqueléticos marcharam para dentro, centenas deles, de todas as épocas e nações da civilização ocidental. Enfileiraram-se nos quatro cantos da sala, bloqueando as saídas. Hades urrou:
– Você acha que eu quero a guerra, filhote de deus?
Tive vontade de dizer, Bem, esses caras não se parecem muito com ativistas pela paz.Mas achei que poderia ser uma resposta perigosa.
– Você é o Senhor dos Mortos – falei com cautela. – Uma guerra iria expandir seu remo, certo?
– É bem característico dos meus irmãos dizerem uma coisa dessas! Acha que preciso de mais súditos? Não está vendo a grandeza dos Campos de Asfódelos?
– Bem...
– Você tem ideia de quanto meu reino inchou só neste último século, quantas subdivisões tive de criar? – Abri a boca para responder, mas Hades agora estava embalado. – Mais espíritos de segurança – queixou-se. – Problemas de trânsito no pavilhão de julgamentos. Horas extras em dobro para o pessoal. Eu era um deus rico, Percy Jackson. Controlo todos os metais preciosos embaixo da terra. Mas as minhas despesas!
– Caronte quer um aumento de salário – despejei, acabando de me lembrar do fato. Assim que falei, pensei que perdera uma ótima chance de ficar calado.
– Não me fale de Caronte! – gritou Hades. – Ele está impossível desde que descobriu os ternos italianos! Problemas em toda parte, e eu tenho de lidar com todos eles pessoalmente. O tempo de viagem entre o palácio e os portões já é suficiente para me deixar insano! E os mortos continuam chegando. Não, filhote de deus, eu não preciso de ajuda para arranjar súditos! Não pedi essa guerra.
– Mas você pegou o raio-mestre de Zeus.
– Mentiras! – Mais estrondos. Hades ergueu-se do trono, ficando da altura de uma trave de futebol. – Seu pai pode enganar Zeus, menino, mas eu não sou tão estúpido. Enxergo o plano dele.
– O plano dele?
– Você foi o ladrão no solstício de inverno – disse ele. – Seu pai pensou em mantê-lo como seu pequeno segredo. Ele o mandou para a sala do trono no Olimpo. Você pegou o raio-mestre e meu elmo. Se eu não tivesse enviado minha Fúria para descobri-lo na Academia Yancy, Poseidon talvez tivesse conseguido esconder o plano para desencadear uma guerra. Mas agora você foi forçado a aparecer. Será exposto como o ladrão de Poseidon, e eu terei meu elmo de volta!
– Mas... – falou Annabeth. Pude perceber que a cabeça dela estava a um milhão de quilômetros por hora. – Senhor Hades, seu elmo das trevas também desapareceu?
– Não banque a inocente comigo, menina. Você e o sátiro estiveram ajudando este herói, que veio aqui me ameaçar sem dúvida em nome de Poseidon, a me trazer um ultimato. Poseidon acha que posso ser chantageado para apoiá-lo?
– Não! – falei. – Poseidon não... eu não...
– Não falei nada do desaparecimento do elmo – rosnou Hades – porque não tenho ilusões de que alguém no Olimpo me faça justiça, que me dê alguma ajuda. Não posso permitir que vaze a notícia de que minha arma mais poderosa está desaparecida. Portanto procurei por você eu mesmo, e quando ficou claro que você vinha a mim para fazer sua ameaça, não tentei detê-lo.
– Você não tentou nos deter? Mas...
– Devolva meu elmo agora, ou vou interromper a morte – ameaçou Hades. – Esta é a minha contraproposta. Abrirei a terra e mandarei os mortos se despejarem de volta em seu mundo. Transformarei suas terras em um pesadelo. E você, Percy Jackson... o seu esqueleto liderará o meu exército para fora do Hades. Todos os soldados esqueléticos deram um passo à frente, com as armas de prontidão.
A essa altura, eu deveria ter ficado aterrorizado. O estranho foi que eu me senti ofendido. Nada me deixa mais zangado do que ser acusado de algo que não fiz. Já tivera uma porção de experiências com isso.
– Você é tão mau quanto Zeus – disse eu. – Acha que roubei você? E por isso que mandou as Fúrias atrás de mim?
– É claro – disse Hades.
– E os outros monstros? – Hades franziu o lábio.
– Não tive nada a ver com eles. Eu não queria uma morte rápida para você; queria você diante de mim, vivo, para enfrentar todas as torturas dos Campos da Punição. Por que acha que o deixei entrar no meu reino tão facilmente?
– Facilmente?
– Devolva o que me pertence!
– Mas eu não tenho o seu elmo. Vim buscar o raio-mestre.
– Que você já possui! – bradou Hades. – Você veio aqui com ele, pequeno idiota, achando que poderia me ameaçar!
– Não é verdade!
– Então abra a sua mochila.
Um pensamento horrível me assaltou. O peso da minha mochila, como uma bola de boliche... Não podia ser... Tirei a mochila dos ombros e abri o zíper. Dentro havia um cilindro de metal de sessenta centímetros de comprimento, com uma ponta de cada lado, zumbindo de energia.
– Percy – disse Annabeth. – Como...
– Eu... eu não sei. Não entendo.
– Vocês, heróis, são sempre iguais – disse Hades. – Seu orgulho os torna tolos, achando que podem trazer uma arma as sim diante de mim. Eu não pedi o raio de Zeus, mas já que ele está aqui, você o entregará a mim. Tenho certeza de que será um excelente instrumento de barganha. E agora... o meu elmo. Onde está?
Eu estava sem fala. Não tinha elmo nenhum. Não tinha ideia de como o raio-mestre fora parar na minha mochila. Quis pensar que Hades estava armando algum tipo de truque. Hades era o vilão. Mas de repente o mundo virará de lado. Percebi que havia sido usado. Alguém fizera Zeus, Poseidon e Hades quererem a caveira um do outro. O raio-mestre estava na minha mochila, e eu recebera a mochila de...
– Senhor Hades, espere – disse eu. – Isso tudo é um engano.
– Um engano? – rugiu Hades. Os esqueletos apontaram as armas. Lá no alto houve um bater de asas coriáceas, e as três Fúrias voaram para baixo para empoleirar-se nas costas do trono do seu senhor. A que tinha as feições da Sra. Dodds arreganhou um sorriso ávido para mim e estalou o seu chicote. – Não há engano nenhum – disse Hades. – Sei por que você veio, e sei a razão real por que trouxe o raio. Você veio negociar por ela.
Hades soltou uma bola de fogo dourado da palma de sua mão Ela explodiu nos degraus diante de mim, e lá estava a minha mãe congelada em uma chuva de ouro, exatamente como no momento em que o Minotauro começou a apertá-la até a morte. Não pude falar. Estendi a mão para tocá-la, mas a luz era quente como uma fogueira.
– Sim – disse Hades com satisfação. – Eu a tomei. Eu sabia, Percy Jackson, que você por fim viria barganhar comigo. Devolva o meu elmo, e talvez eu a deixe ir. Ela não está morta, você sabe. Ainda não. Mas, se você me desagradar, isso irá mudar.
Pensei nas pérolas no meu bolso. Talvez elas pudessem me safar daquilo. Se ao menos eu conseguisse libertar a minha mãe...
– Ah, as pérolas – disse Hades, e meu sangue gelou. – Sim meu irmão e os seus truquezinhos. Apresente-as, Percy Jackson. Minha mão se moveu contra a vontade e eu apresentei as pérolas. – Apenas três – disse Hades. – Que pena. Você sabe que cada qual protege uma só pessoa. Tente levar a sua mãe, então filhotinho de deus. E qual dos seus amigos você deixará para trás para passar a eternidade comigo? Vá em frente. Escolha. Ou me dê a mochila e aceite as minhas condições.
Olhei para Annabeth e Grover. Suas expressões eram soturnas.
– Fomos enganados – disse-lhes. – Pegos numa armadilha.
– Sim, mas por quê? – perguntou Annabeth. – E a voz no abismo...
– Ainda não sei – disse eu. – Mas pretendo perguntar.
– Decida, menino! – gritou Hades.
– Percy – Grover pôs a mão no meu ombro. – Você não pode lhe entregar o raio.
– Eu sei disso.
– Deixe-me aqui – disse ele. – Use a terceira pérola para sua mãe.
– Não!
– Eu sou um sátiro – disse Grover. – Nós não temos almas como os seres humanos. Ele pode me torturar até a morte, mas não ficará comigo para sempre. Eu reencarnarei em uma flor, ou alguma outra coisa. É o melhor jeito.
– Não. – Annabeth sacou a sua faca de bronze. – Vocês dois continuam. Grover, você tem de proteger Percy. Você tem de conseguir a sua licença de buscador e começar a sua missão por Pan. Tire a mãe dele para fora daqui. Eu lhes darei cobertura. Planejo cair lutando.
– Nem pensar – disse Grover. – Eu vou ficar para trás.
– Pense de novo, menino-bode – disse Annabeth.
– Parem, vocês dois! – Era como se o meu coração estivesse sendo rasgado ao meio. Ambos passaram por tanta coisa comigo. Lembrei-me de Grover bombardeando a medusa no jardim de estátuas, e de Annabeth nos salvando de Cérbero; nós sobrevivemos ao Parque Aquático de Hefesto, ao Arco de St. Louis, ao Cassino Lótus. Passei milhares de quilômetros preocupado porque seria traído por um amigo, mas aqueles amigos jamais fariam isso. Eles não fizeram nada a não ser me salvar, vezes e vezes seguidas, e agora queriam sacrificar suas vidas pela minha mãe.
– Eu sei o que fazer – disse eu. – Segurem isto. Entreguei uma pérola a cada um deles.
Annabeth disse:
– Mas, Percy...
Virei-me e encarei minha mãe. Queria desesperadamente me sacrificar e usar a última pérola para ela, mas sabia o que ela iria dizer. Ela jamais permitiria isso. Eu tinha de levar o raio de volta para o Olimpo e contar a verdade a Zeus. Tinha de impedir a guerra. Ela jamais me perdoaria se eu a salvasse em vez disso. Pensei na profecia feita na Colina Meio-Sangue, que parecia ter sido um milhão de anos atrás. No fim você não conseguirá salvar aquilo que mais importa.
– Desculpe – disse a ela. – Eu voltarei. Vou encontrar um jeito.
A expressão presunçosa na cara de Hades se apagou. Ele disse:
– Filhote de deus...?
– Vou encontrar o seu elmo, tio – disse a ele. – Vou devolvê-lo. Lembre-se do aumento de salário de Caronte.
– Não me desafie...
– E não faria mal brincar com Cérbero de vez em quando. Ele gosta de bolas de borracha vermelhas.
– Percy Jackson, você não vai...
Eu gritei:
– Agora!
Esmagamos as pérolas aos nossos pés. Por um momento apavorante, nada aconteceu.
Hades gritou:
– Destruam-nos!
O exército de esqueletos avançou, espadas desembainhadas fuzis engatilhados no modo totalmente automático. As Fúrias mergulharam, os chicotes explodindo em chamas. Exatamente quando os esqueletos abriram fogo, os fragmentos; de pérola aos meus pés explodiram em luz verde e uma rajada de ar fresco do mar. Eu fui encapsulado em uma esfera branca leitosa que começava a flutuar para fora do chão. Annabeth e Grover estavam bem atrás de mim. Lanças e balas ricochetearam inofensivamente nas bolhas de pérola enquanto flutuávamos para cima. Hades gritou com tamanha raiva que a fortaleza inteira se sacudiu e eu soube que aquela não seria uma noite tranquila em Los Angeles.
– Olhem para cima! – gritou Grover. – Vamos bater!
Sem dúvida, estávamos indo direto para as estalactites, as quais imaginei que iriam estourar as nossas bolhas e nos espetar.
– Como se controla essas coisas? – gritou Annabeth.
– Acho que não se controla! – gritei de volta.
Gritamos quando as bolhas colidiram com o teto e... Escuridão. Será que estávamos mortos?
Não, eu ainda tinha a sensação de velocidade. Estávamos indo para cima, através da rocha sólida, tão facilmente quanto uma bolha de ar na água. Aquele era o poder das pérolas, eu me dei conta – o que pertence ao mar sempre retornará ao mar. Por alguns momentos, não vi nada além das paredes macias da minha esfera, então minha pérola irrompeu no fundo do oceano. As outras duas esferas leitosas, Annabeth e Grover, me acompanharam enquanto disparávamos para cima através da água. E... pimba! Explodimos na superfície, no meio da baía de Santa Monica, jogando um surfista para fora da sua prancha com um indignado "Ei, cara!". Agarrei Grover e o arrastei até uma boia salva-vidas. Peguei Annabeth e a arrastei também. Um tubarão curioso dava voltas em torno de nós, um grande tubarão branco com cerca de três metros e meio de comprimento.
Eu disse:
– Cai fora! O tubarão se virou e fugiu apressado. O surfista gritou alguma coisa sobre cogumelos estragados e se afastou de nós patinhando o mais rápido que podia. De algum modo, eu sabia que horas eram: início da manhã, 21 de junho, o dia do solstício de verão. À distância, Los Angeles estava em chamas, nuvens de fumaça subindo de bairros por toda a cidade. Tinha havido um terremoto sem dúvida, e a culpa era de Hades. Provavelmente estava mandando um exército de mortos atrás de mim naquele instante. Mas, naquele momento, o Mundo Inferior não era o meu maior problema. Eu tinha de chegar até a praia. Tinha de levar o raio de Zeus de volta para o Olimpo. Mais que tudo, eu precisava ter uma conversa séria com o deus que me enganara.
Capítulo 20 - A luta contra o meu parente imbecil
Um barco da Guarda Costeira nos recolheu, mas eles estavam ocupados demais para ficar conosco por muito tempo, ou para querer saber por que três crianças com roupas casuais foram parar no meio da baía. Havia um desastre para cuidar. Seus rádios estavam entupidos de chamados de emergência. Eles nos largaram no píer Santa Monica com toalhas em volta dos ombros e garrafas d'água que diziam EU SOU UM GUARDA-COSTEIRO MIRIM! e saíram às pressas para salvar mais gente. Nossas roupas estavam encharcadas, inclusive as minhas. Quando o barco da Guarda Costeira apareceu, eu implorei baixinho que eles não me tirassem da água e me achassem perfeitamente seco, o que teria feito algumas sobrancelhas se erguerem. Então desejei ficar encharcado. Sem dúvida, minha mágica à prova d'água me abandonara. Eu também estava descalço, porque entregara meus sapatos a Grover. Era melhor a Guarda Costeira se perguntar por que um de nós estava descalço do que se perguntar por que um de nós tinha cascos. Depois de chegar a terra firme, saímos cambaleando pela praia vendo a cidade queimar contra um lindo pôr do sol. Era como se tivesse acabado de retornar do mundo dos mortos – o que era verdade. Minha mochila estava pesada, com o raio-mestre de Zeus. Meu coração estava ainda mais pesado por ter visto minha mãe.
– Eu não acredito – disse Annabeth. – A gente passou por tudo aquilo e...
– Foi um truque – disse eu. – Uma estratégia digna de Atena.
– Ei - avisou.
– Você entendeu, não é?
Ela baixou os olhos, a raiva murchou.
– Sim. Entendi.
– Bem, eu não entendi! – reclamou Grover. – Será que alguém poderia...
– Percy... – disse Annabeth. – Eu sinto muito pela sua mãe. Sinto tanto...
Fiz que não estava ouvindo. Se eu falasse sobre a minha mãe, ia começar a chorar como uma criancinha.
– A profecia estava certa – disse eu. – Você deve ir para o oeste, e enfrentar o deus que se tornou desleal. Mas não era Hades. Hades não queria guerra entre os Três Grandes. Algum outro executou o roubou. Alguém roubou o raio-mestre de Zeus, e o elmo de Hades, e tramou contra mim porque sou filho de Poseidon. Poseidon será culpado por ambos os lados. Ao pôr do sol de hoje, haverá uma guerra tríplice. E eu a terei causado.
Grover sacudiu a cabeça, desconcertado.
– Mas quem seria tão fingido? Quem iria querer uma guerra tão ruim?
Parei bruscamente, olhando para a praia.
– Puxa, deixem-me pensar.
Ali estava ele, aguardando por nós, em seu casaco preto de couro, e óculos escuros, um bastão de beisebol de alumínio ao ombro. A motocicleta roncava ao seu lado, o farol deixando a areia vermelha.
– Ei, garoto – disse Ares, parecendo genuinamente contente em me ver. – Você devia estar morto.
– Você me enganou – disse eu. – Você roubou o elmo e o raio-mestre.
Ares arreganhou um sorriso.
– Bem, mas eu não os roubei pessoalmente. Deuses tirando símbolos de poder uns dos outros, nã-nã-nã, isso é inaceitável. Mas você não é o único herói do mundo que pode dar recados.
– Quem você usou? Clarisse? Ela estava lá no solstício de inverno.
A ideia pareceu diverti-lo.
– Não importa. A questão, garoto, é que você está impedindo o esforço de guerra. Entenda, você precisa morrer no Mundo Inferior. Então o Velho Alga do Mar vai ficar furioso com Hades por matá-lo. O Hálito de Cadáver ficará com o raio-mestre de Zeus, e assim Zeus ficará furioso com ele. E Hades ainda está procurando por isto...
Ele tirou do bolso um capuz de esqui – do tipo que os ladrões de banco usam – e o colocou no meio do guidão da sua moto. Imediatamente, o capuz se transformou em um elaborado capacete de guerra em bronze.
– O elmo das trevas – arfou Grover.
– Exatamente – disse Ares. – Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, Hades ficará furioso com ambos, Zeus e Poseidon, porque ele não sabe quem pegou isto. Logo logo teremos uma bela pancadariazinha tríplice em andamento.
– Mas eles são a sua família! – protestou Annabeth.
Ares encolheu os ombros.
– O melhor tipo de guerra. Sempre a mais sangrenta. Nada como ficar olhando seus parentes lutarem, eu sempre digo.
– Você me deu a mochila em Denver – disse eu. – O raio-mestre estava lá o tempo todo.
– Sim e não – disse Ares. – Provavelmente é complicado demais para o seu pequeno cérebro mortal acompanhar, mas a mochila é a bainha do raio-mestre, apenas um pouco adaptada. O raio está conectado a ela, tipo aquela sua espada, garoto. Ela sempre volta para o seu bolso, certo?
Não estava bem certo de como Ares sabia disso, mas acho que um deus da guerra precisa tratar de conhecer tudo sobre armas.
– De qualquer modo – continuou Ares – eu modifiquei a mágica um pouquinho, para que o raio só retornasse à bainha depois de você chegar ao Mundo Inferior. Chegou perto de Hades... Bingo! Você recebeu um e-mail. Se você morresse no caminho, não haveria perda. Eu ainda teria a arma.
– Mas por que você simplesmente não ficou com o raio para você? – disse eu. – Por que mandá-lo para Hades?
O queixo de Ares crispou-se. Por um momento, foi quase como se ele estivesse ouvindo uma outra voz, bem no fundo da cabeça.
– Por que eu não... sim... com esse tipo de poder de fogo...
Ele manteve o transe por um segundo... dois segundos... Troquei olhares nervosos com Annabeth. A cara de Ares clareou.
– Porque eu não queria ter problemas. Melhor você ser pego em flagrante, segurando a coisa.
– Você está mentindo – disse eu. – Mandar o raio para o Mundo Inferior não foi ideia sua, foi?
– É claro que foi! – Fumaça escapou por baixo dos seus óculos escuros, como se eles estivessem a ponto de pegar fogo.
– Você não ordenou o roubo – adivinhei. – Alguém mais enviou um herói para roubar os dois itens. Então, quando Zeus mandou você caçá-lo, você pegou o ladrão. Mas você não o entregou a Zeus. Alguma coisa o convenceu a deixá-lo ir. Você guardou os itens até que outro herói pudesse vir e completar a entrega. Aquela coisa no abismo está dando ordens a você.
– Eu sou o deus da guerra! Não aceito ordens de ninguém! Eu não tenho sonhos!
Eu hesitei.
– Quem foi que disse alguma coisa sobre sonhos?
Ares pareceu agitado, mas tentou encobrir isso com um sorriso forçado.
– Vamos voltar ao problema em pauta, garoto. Você está vivo. Eu não posso deixar que leve aquele raio para o Olimpo. Pode ser que consiga convencer aqueles idiotas cabeças-duras a ouvi-lo. Portanto preciso matá-lo. Não é nada pessoal.
Ele estalou os dedos. A areia explodiu aos seus pés e surgiu um javali feroz investindo, ainda maior e mais feio que aquele cuja cabeça estava pendurada acima da porta do chalé 7 do Acampamento Meio-Sangue. A besta escavou a areia, olhando furiosamente para mim com olhos pequenos e brilhantes enquanto abaixava os presas afiadas como navalhas e aguardava a ordem para matar. Eu entrei na arrebentação.
– Enfrente-me você mesmo, Ares.
Ele riu, mas ouvi um pouco de tensão na sua risada... um certo constrangimento.
– Você só tem um talento, garoto, que é fugir. Você fugiu da Quimera. Você fugiu do Mundo Inferior. Não tem coragem para me enfrentar.
– Com medo?
– Só nos seus sonhos de adolescente. – Mas seus óculos escuros estavam começando a derreter com o calor dos olhos. – Nada de envolvimento direto. Sinto muito, garoto. Você não está no meu nível.
Annabeth disse:
– Percy, corra!
O javali gigante atacou. Mas eu já estava cansado de correr de monstros. Ou de Hades, ou de Ares, ou de qualquer um. Quando o javali investiu contra mim, eu destampei minha caneta e dei um passo para o lado. Contracorrente apareceu em minhas mãos. Dei um golpe para cima. A presa direita decepada do javali caiu aos meus pés, enquanto o animal desorientado investia contra o mar. Eu gritei:
– Onda! Imediatamente uma onda surgiu do nada e engolfou o javali, enrolando-se nele como um cobertor. A besta guinchou uma vez, aterrorizada. E então se foi, engolida pelo mar.
Voltei-me novamente para Ares.
– Você vai lutar comigo agora? – perguntei. – Ou vai se esconder de novo atrás de um porquinho de estimação?
A cara de Ares estava roxa de raiva.
– Tome cuidado, garoto. Eu poderia transformá-lo em...
– Uma barata – disse eu. – Ou uma lombriga. Sim, eu tenho certeza. Isso o salvaria de ter o seu divino couro chicoteado, não é mesmo?
Chamas dançaram por cima dos seus óculos.
– Ah, você realmente está pedindo para ser esmagado até virar uma poça de gordura.
– Se eu perder, me transforme no que quiser. Fique com o raio. Se eu vencer, o elmo e o raio são meus, e você tem de ir embora.
Ares me olhou com uma expressão de escárnio. Ele brandiu o bastão de beisebol que trazia ao ombro.
– Como gostaria de ser esmagado: modo clássico ou moderno? – Eu lhe mostrei a minha espada. – Legal, menino morto – disse ele. – Modo clássico então.
O bastão de beisebol transformou-se em uma enorme espada de duas mãos. A guarda era uma grande caveira de prata com um rubi na boca.
– Percy – disse Annabeth. – Não faça isso. Ele é um deus.
– Ele é um covarde – disse eu para ela.
Ela engoliu em seco.
– Use isto pelo menos. Para dar sorte. – Ela tirou o seu colar, com cinco anos de contas do acampamento e o anel do pai dela e colocou em volta do meu pescoço. – Reconciliação – disse ela. – Atena e Poseidon juntos. Meu rosto ficou um pouco quente, mas consegui sorrir.
– Obrigado.
– E pegue isto – disse Grover.
Ele me entregou uma lata achatada que parecia estar no seu bolso há mil quilômetros.
– Os sátiros lhe dão respaldo.
– Grover... eu não sei o que dizer.
Ele me deu uma palmadinha no ombro. Enfiei a lata no meu bolso de trás.
– Vocês já se despediram? – Ares veio em minha direção, o comprido casaco de couro preto se arrastando atrás dele, a espada faiscando como fogo ao nascer do sol. – Eu venho lutando há uma eternidade, garoto. Minha força é ilimitada e eu não posso morrer. O que você tem?
Um ego menor, pensei, mas não disse nada. Mantive os pés na arrebentação, recuando na água até os tornozelos. Pensei no que Annabeth havia dito no restaurante de Denver, tanto tempo atrás: Ares tem força. É tudo o que ele tem. Mesmo a força às vezes tem de se curvar à sabedoria.
Ele desceu a espada, tentando rachar ao meio a minha cabeça, mas eu não estava lá. Meu corpo pensava por mim. A água pareceu me empurrar para o ar e eu me lancei para cima dele, golpeando para o lado com a espada ao descer. Mas Ares foi igualmente rápido. Torceu o corpo e o golpe que deveria tê-lo pego diretamente na espinha foi desviado para fora pela guarda da sua espada. Ele sorriu.
– Nada mau, nada mau.
Ele atacou de novo e fui forçado a pular para a terra seca. Tentei sair de lado, para voltar à água, mas Ares parecia saber o que eu queria. Ele foi mais habilidoso, me pressionando tanto que tive de me concentrar totalmente em não ser cortado em pedaços. Continuei recuando para longe da arrebentação. Não conseguia achar nenhuma abertura para atacar. O alcance da espada- dele era bem maior que o de Anaklusmos. Chegue perto, Luke me dissera uma vez, em nossa aula de esgrima. Quando a sua lâmina é a mais curta, chegue perto. Avancei com uma estocada, mas Ares estava esperando por isso. Ele arrancou a espada das minhas mãos e me chutou no peito. Eu saí voando – cinco, talvez dez metros.Teria quebrado as costas se não tivesse desabado sobre a areia fofa de uma duna.
– Percy! – gritou Annabeth. – Polícia!
Estava vendo tudo dobrado. Parecia que o meu peito tinha sido atingido por um aríete, mas consegui me pôr em pé. Eu não podia desviar os olhos de Ares por medo de que ele me cortasse ao meio, mas com o canto do olho vi as luzes vermelhas piscando na avenida beira-mar. Portas de carros batiam.
– Ali, guarda! – gritou alguém. – Está vendo?
Uma voz brusca de policial:
– Parece aquele garoto da tevê... que diabo...
– Aquele cara está armado – disse outro policial. – Peça reforços.
Rolei para o lado e a lâmina de Ares cortou a areia. Corri para a minha espada, peguei-a e desferi um golpe contra o rosto de Ares, apenas para ver a minha lâmina desviada de novo. Ares parecia saber exatamente o que eu ia fazer um momento antes. Recuei para a arrebentação, forçando-o a me seguir.
– Admita, garoto – disse Ares. – Você está perdido. Estou só brincando com você.
Meus sentidos estavam fazendo hora extra. Agora eu entendia o que Annabeth dissera sobre como o transtorno do déficit de atenção pode manter você vivo na batalha. Eu estava totalmente desperto, notando cada pequeno detalhe. Eu podia ver onde Ares estava se retesando. Podia dizer de que lado ia atacar. Ao mesmo tempo, tinha consciência de Annabeth e Grover, dez metros à minha esquerda. Vi uma segunda viatura parando, a sirene uivando. Espectadores, pessoas que perambula viam pelas ruas por causa do terremoto, começavam a se juntar.
No meio da multidão, pensei ver alguns andando com aquele estranho passo de trote de sátiros disfarçados. Havia também vultos rebrilhantes de espíritos, como se os mortos tivessem se erguido do Hades para assistir à batalha. Ouvi o bater de asas coriáceas circulando em algum lugar acima. Mais sirenes. Avancei mais para dentro da água, mas Ares foi rápido. A ponta da sua espada rasgou a manga da minha roupa e roçou o meu antebraço. A voz de um policial no megafone disse:
– Larguem as espingardas! Coloquem na areia. Agora!
Espingardas? Olhei para a arma de Ares, e ela parecia estar tremeluzindo; às vezes parecia uma espingarda, às vezes uma espada de duas mãos. Eu não sabia o que os seres humanos estavam vendo em minhas mãos, mas tinha certeza de que não os faria gostar de mim. Ares virou-se para olhar ferozmente para os nossos espectadores, o que me deu um momento para respirar. Havia cinco viaturas de polícia agora, e uma fileira de policiais abaixados atrás delas, com pistolas apontadas para nós.
– Este é um assunto particular! – berrou Ares. – Vão embora!
Ele fez um movimento circular com a mão, e uma parede de chamas vermelhas passou através das viaturas. Os policiais mal tiveram tempo de mergulhar para se proteger antes de os carros explodirem. A multidão se dispersou aos gritos. Ares soltou uma gargalhada retumbante.
– Agora, heroizinho. Vamos acrescentar você ao churrasco.
Ele golpeou. Eu desviei da lâmina. Cheguei perto o bastante para atacar, tentei enganá-lo com uma ginga, mas o meu golpe foi rechaçado. As ondas agora estavam me atingindo nas costas. Ares estava mergulhado até as coxas, avançando atrás de mim. Senti o ritmo do mar, as ondas ficando maiores enquanto a maré avançava, e de repente tive uma ideia.Ondas pequenas, pensei. E a água atrás de mim pareceu recuar. Eu estava segurando a maré com a força da minha vontade, mas a tensão se acumulava, como gás carbônico atrás de uma rolha. Ares avançou, sorrindo confiante. Eu abaixei a minha lâmina, como se estivesse exausto demais para prosseguir. Aguarde, eu disse para o mar. A pressão agora estava quase me levantando acima dos pés. Ares ergueu a espada. Eu liberei a maré e pulei, subindo como um rojão em uma onda, passando diretamente por cima de Ares. Uma parede de dois metros de água o atingiu em cheio no rosto, e ele ficou praguejando e cuspindo com a boca cheia de algas. Caí em pé atrás dele, espirrando água, e simulei um ataque em direção à cabeça dele, como já havia feito. Ele se virou a tempo de erguer a espada, mas dessa vez estava desorientado e não previu o truque. Mudei de direção, investi para o lado e mandei Contracorrente diretamente para baixo na água, enfiando a ponta no calcanhar do deus. O rugido que se seguiu fez o terremoto do Hades parecer um evento menor. O próprio mar explodiu para longe de Ares, deixando um círculo de areia molhada com quinze metros de diâmetro. Icor, o sangue dourado dos deuses, jorrou de um talho profundo na bota do deus. A expressão no seu rosto ia além do ódio. Era dor, choque, incredulidade total por ter sido ferido. Ele veio mancando na minha direção, resmungando antigas pragas gregas. Alguma coisa o deteve.
Era como se uma nuvem tivesse encoberto o sol, mas pior. A luz foi sumindo. Sons e cores se extinguiram. Uma presença fria e pesada passou sobre a praia, retardando o tempo, diminuindo a temperatura até o congelamento, e fazendo-me sentir que a vida não valia a pena, que lutar era inútil. As trevas se dissiparam. Ares parecia aturdido. As viaturas da polícia ardiam atrás de nós. A multidão de espectadores fugira. Annabeth e Grover estavam plantados na praia, em choque, observando a água se derramar de volta em torno dos pés de Ares, e o seu luminescente icor dourado se diluindo na maré. Ares abaixou a espada.
– Você fez um inimigo, filhote de deus – disse-me ele. – Você selou o seu destino. A cada vez que erguer a sua lâmina em batalha, a cada vez que você esperar sucesso, sentirá a minha maldição. Cuidado, Perseu Jackson. Cuidado. Seu corpo começou a brilhar.
– Percy! – gritou Annabeth. – Não olhe!
Virei-me enquanto o deus Ares revelava sua verdadeira forma imortal. De algum modo eu sabia que, se olhasse, iria me desintegrar em cinzas. A luz se extinguiu. Olhei para trás. Ares se fora. A maré recuou para revelar o elmo de bronze das trevas de Hades. Eu o recolhi e fui andando na direção dos meus amigos. Mas, antes de chegar lá, ouvi o bater de asas de couro. Três vovós de aparência maligna com chapéus de renda e chicotes flamejantes desceram do céu e pousaram diante de mim. A Fúria do meio, a que tinha sido a Sra. Dodds, deu um passo à frente. Seus caninos estavam expostos, mas pela primeira vez não tinha um aspecto ameaçador. Parecia mais desapontada, como se tivesse planejado me comer na ceia, mas percebera que eu podia lhe dar indigestão.
– Nós vimos tudo – sibilou ela. – Então... realmente não foi você?
Joguei o capacete para ela, e ela o agarrou, surpresa.
– Devolva isto ao Senhor Hades – disse eu. – Conte-lhe a verdade. Diga-lhe para cancelar a guerra.
Ela hesitou, depois passou uma língua bifurcada pelos lábios coriáceos verdes. – Viva bem, Percy Jackson. Torne-se um verdadeiro herói. Porque, se você não o fizer, se algum dia cair nas minhas garras de novo...
Ela cacarejou, saboreando a ideia. Então ela e as irmãs levantaram voo em suas asas de morcego, pairaram no céu cheio de fumaça e desapareceram. Juntei-me a Grover e Annabeth, que olhavam para mim assombrados.
– Percy... – disse Grover. – Aquilo foi tão incrivelmente...
– Aterrorizante – disse Annabeth.
– Legal! – corrigiu Grover.
Eu não me sentia aterrorizado. Certamente não me sentia legal. Estava cansado, doído e sem nenhuma energia.
– Vocês sentiram aquele... o que era aquilo? – perguntei.
Os dois assentiram, constrangidos.
– Devem ser as Fúrias lá no alto – disse Grover. Mas eu não tinha tanta certeza. Alguma coisa impedira Ares de me matar, e o que quer que pudesse fazer isso era muito mais forte do que as Fúrias. Olhei para Annabeth, e tivemos a mesma sensação. Agora eu sabia o que estava naquele abismo, o que havia falado da entrada do Tártaro. Resgatei a minha mochila com Grover e olhei dentro. O raio-mestre ainda estava lá. Uma coisa tão pequena quase causara a Terceira Guerra Mundial.
– Temos de voltar a Nova York – disse eu. – Esta noite.
– É impossível – disse Annabeth – a não ser que nós...
– Fôssemos voando – completei.
Ela arregalou os olhos para mim.
– Voando, tipo num avião, coisa que avisaram você para nunca fazer, para que Zeus não o fulmine para fora do céu, e ainda for cima carregando uma arma que tem mais poder destrutivo do que uma bomba nuclear?
– É – disse eu. – Mais ou menos isso. Vamos.
Capítulo 21 - Meu acerto de contas
É gozado como os seres humanos são capazes de enrolar a sua mente em volta das coisas e encaixá-las na sua versão de realidade. Quíron me contara isso muito tempo atrás. Como de costume, eu só dei bola para sua sabedoria muito tempo depois. De acordo com as notícias de Los Angeles, a explosão na praia de Santa Monica tinha sido causada quando um sequestrador enlouquecido disparou uma espingarda contra uma viatura da polícia. Ele acidentalmente atingiu um tubo principal de gás que se rompera durante o terremoto. Esse sequestrador enlouquecido (também conhecido como Ares) era o mesmo homem que me abduzira com dois outros adolescentes em New York e nos trouxera até o outro lado do país em uma odisseia de terror que durara dez dias. O pobrezinho do Percy Jackson, afinal, não era um criminoso internacional. Ele causara uma comoção naquele ônibus da Greyhound em New Jersey tentando escapar do seu sequestrador (e depois, testemunhas chegaram a jurar que tinham visto o homem de roupa de couro no ônibus – "Por que não me lembrei dele antes?"). O homem enlouquecido causara a explosão no Arco de St. Louis. Afinal, nenhum garotinho poderia ter feito aquilo. Uma garçonete preocupada de Denver vira o homem ameaçar seus sequestrados do lado de fora do seu restaurante, chamara um amigo para tirar uma foto, e notificara a polícia. Finalmente, o bravo Percy Jackson (eu estava começando a gostar desse menino) subtraíra uma espingarda do seu sequestrador em Los Angeles e lutara contra ele, espingarda contra rifle, na praia. A polícia chegara bem a tempo. Mas, na espetacular explosão, cinco viaturas da polícia foram destruídas e o sequestrador fugira. Não houve mortes. Percy Jackson e seus dois amigos estavam em segurança, sob custódia da polícia. Os repórteres nos forneceram essa história inteira. Nós apenas assentimos e nos fizemos de chorosos e exaustos (o que não foi difícil), e representamos o papel de crianças vitimizadas para as câmeras.
– Tudo o que eu quero – disse eu, contendo as lágrimas – é ver o meu adorado padrasto de novo. Toda vez que o via na tevê me chamando de punk delinquente, eu sabia... de algum modo... que tudo ia dar certo. E eu sei que ele vai querer recompensar uma por uma todas as pessoas desta linda cidade de Los Angeles com um eletrodoméstico grátis, dos grandes, da sua loja. Aqui está o número do telefone.
A polícia e os repórteres ficaram tão comovidos que passaram o chapéu e levantaram dinheiro para três passagens no próximo avião para Nova York. Eu sabia que não havia escolha senão voar. Esperava que Zeus me desse algum tempo de lambuja, consideradas as circunstâncias. Mas ainda assim foi difícil me forçar a embarcar no voo. A decolagem foi um pesadelo. Cada momento de turbulência era mais assustador que um monstro grego. Eu não larguei dos braços da poltrona até pousarmos em segurança no aeroporto de La Guardia. A imprensa local aguardava por nós do lado de fora da segurança, mas conseguimos escapar graças a Annabeth, que atraiu para longe com o seu boné dos Yankees invisível, gritando:
– Eles estão lá, perto da sorveteria! Venham! e depois juntou a nós na área de retirada de bagagem. Separamo-nos no ponto de táxi. Eu disse a Annabeth e Grover para voltar à Colina Meio-Sangue e contar a Quíron o que acontecera. Eles protestaram, e era difícil deixá-los partir depois de tudo que passamos juntos, mas eu sabia que tinha de cumprir essa última parte da minha missão sozinho. Se as coisas dessem errado, se os deuses não acreditassem em mim... eu queria que Annabeth e Grover sobrevivessem para contar a verdade a Quíron. Embarquei em um táxi e segui para Manhattan.
Trinta minutos depois, entrei no saguão do Edifício Empire State. Devo ter parecido uma criança abandonada, com minhas roupas esfarrapadas e minha cara toda arranhada. Eu não dormia havia pelo menos vinte e quatro horas.
Fui até o guarda na mesa da recepção e disse:
– Seiscentésimo andar.
Ele estava lendo um livro enorme com a figura de um feiticeiro na capa. Eu não curto muito fantasia, mas acho que o livro era bom, porque o guarda levou algum tempo para erguer os olhos.
– Esse andar não existe, garoto.
– Eu preciso de uma audiência com Zeus. – Ele me deu um sorriso vago. – O quê?
– Você me ouviu.
Eu já estava quase concluindo que aquele cara era apenas um mortal comum, e era melhor eu correr antes que ele chamasse a patrulha da camisa de força, quando ele disse:
– Sem hora marcada, nada de audiência, garoto. O Senhor Zeus não atende ninguém sem aviso prévio.
– Ah, eu acho que ele vai abrir uma exceção.
Tirei a mochila das costas e abri o zíper. O guarda olhou para o cilindro metálico lá dentro sem entender o que era por alguns segundos. Então seu rosto empalideceu.
– Isto não é...
– Sim, é – garanti. – Você quer que eu o tire e...
– Não! Não!
Ele se ergueu atabalhoadamente da sua cadeira, tateou em volta da mesa procurando um cartão-chave, e o entregou para mim.
– Insira na fenda de segurança. Certifique-se de que ninguém mais esteja no elevador com você.
Fiz o que ele me disse. Assim que as portas do elevador se fecharam, enfiei o cartão na fenda. O cartão desapareceu e um novo botão apareceu no quadro, um botão vermelho que dizia 600. Apertei e esperei, e esperei. Havia música tocando. "Raindrops keepfalling on my head..." Finalmente, plim. As portas se abriram. Saí e quase tive um ataque do coração. Eu estava em um estreito caminho de pedra no meio do ar. Abaixo de mim se encontrava Manhattan, da altura de um avião.
Diante de mim, degraus de mármore branco subiam em espiral pelo meio de uma nuvem até o céu. Meus olhos seguiram a escada até o fim, onde meu cérebro simplesmente não pôde aceitar o que vi. Olhem outra vez, disse meu cérebro. Estamos olhando, meus olhos insistiram. Está realmente lá. Do topo das nuvens se erguia o pico decapitado de uma montanha, o cume coberto de neve. Na encosta da montanha havia dúzias de palácios com vários níveis – uma cidade de mansões – todos com pórticos de colunas brancas, terraços dourados e braseiros de bronze brilhando com mil fogos. Estradas se enroscavam de um jeito maluco até o pico, onde o maior dos palácios resplandecia contra a neve. Jardins precariamente encarapitados floresciam com oliveiras e roseiras. Pude distinguir um mercado a céu aberto cheio de tendas coloridas, um anfiteatro de pedra construído em um lado da montanha, um hipódromo e um coliseu do outro. Era uma cidade grega antiga, só que não estava em ruínas. Era nova, limpa e colorida, como Atenas deve ter sido há dois mil e quinhentos anos.
Este palácio não pode estar aqui, disse para mim mesmo. A ponta de uma montanha pendurada em cima da cidade de Nova York como um asteroide de um bilhão de toneladas? Como podia uma coisa assim estar ancorada acima do Edifício Empire State a plena vista de milhões de pessoas, e não ser notada? Mas aqui estava. E aqui estava eu. Minha viagem pelo Olimpo foi deslumbrante. Passei por algumas ninfas das florestas que deram risadinhas e me atiraram azeitonas do seu pomar. No mercado, mascates se ofereceram para vender ambrosia-no-palito, um escudo novo e uma réplica genuína do Velocino de Ouro em tecido cintilante, conforme anunciado na tevê Hefesto. As nove musas afinavam seus instrumentos para um concerto no parque enquanto uma pequena multidão se reunia – sátiros, náiades e um bando de adolescentes de boa aparência que talvez fossem deuses e deusas menores.
Ninguém parecia preocupado com uma guerra civil iminente. De fato, todo mundo parecia estar num estado de ânimo festivo. Vários se voltaram para me ver passar e cochicharam entre si. Subi pela estrada principal rumo ao grande palácio no pico. Era uma cópia invertida do palácio no Mundo Inferior. Lá, tudo era preto e bronze. Aqui, tudo rebrilhava em branco e prata. Dei-me conta de que Hades deve ter construído o seu palácio para se parecer com este. Ele não era bem-vindo no Olimpo, exceto no solstício de inverno, então construiu seu próprio Olimpo embaixo da terra. A despeito da minha má experiência com ele, senti pena do cara. Ser banido deste palácio parecia realmente injusto. Era de deixar qualquer um amargo. Degraus levavam a um pátio central. Além dele, a sala do trono. Sala não é exatamente a palavra certa. O lugar fazia a Grande Estação Central parecer um armário de vassouras. Colunas maciças se erguiam até um teto abobadado, que era decorado com constelações que se moviam. Doze tronos, construídos para seres do tamanho de Hades, estavam arrumados em um U invertido, exatamente como os chalés do Acampamento Meio-Sangue. Uma enorme fogueira crepitava no braseiro central. Os tronos estavam vazios com exceção de dois no fim: o trono principal à direita e um imediatamente à sua esquerda. Ninguém precisou me dizer quem eram os dois deuses que estavam sentados lá, esperando que eu me aproximasse. Cheguei à frente deles com as pernas tremendo. Os deuses estavam em forma humana gigante, como Hades estivera, mas eu mal podia olhar para eles sem sentir um formigamento, como se o meu corpo estivesse começando a queimar. Zeus, o Senhor dos Deuses, usava um terno risca-de-giz azul-escuro. Estava sentado em um trono simples de platina maciça. Tinha uma barba bem aparada, cinza-mármore e preta, como uma nuvem de tempestade. Seu rosto era orgulhoso belo e severo, os olhos tinham o tom cinzento da chuva. Quando me aproximei dele, o ar estralou e senti cheiro de ozônio. O deus sentado ao lado dele era seu irmão, sem dúvida, mas estava vestido de modo muito diferente. Lembrou-me um catador de praia de Key West. Usava sandálias de couro, bermudas caqui e uma camisa marca Tommy Bahama toda estampada de coqueiros e papagaios. Sua pele tinha um bronzeado escuro e as mãos eram marcadas de cicatrizes como as de um velho pescador. O cabelo era preto, como o meu. Seu rosto tinha o mesmo ar taciturno que sempre me fez ser rotulado de rebelde. Mas os olhos, verde-mar como os meus, eram rodeados de rugas que me diziam que ele também sorria muito. Os deuses não estavam se movendo nem falando, mas havia tensão no ar, como se tivessem acabado de discutir. Aproximei-me do trono do pescador e me ajoelhei aos seus pés.
– Pai.
Não ousei olhar para cima. Meu coração estava disparado, eu podia sentir a energia que emanava dos dois deuses. Se eu dissesse a coisa errada, não havia dúvida de que eles poderiam me reduzir a pó. A minha esquerda, Zeus falou:
– Você não deveria se dirigir primeiro ao senhor desta casa, menino? – Mantive a cabeça baixa e esperei.
– Paz, irmão – disse por fim Poseidon. Sua voz mexeu com as minhas lembranças mais antigas: aquela sensação morna de que me lembrava, de quando eu era bebê, a sensação da sua mão de deus sobre a minha testa. – O menino submete-se ao seu pai. Está certo.
– Então você ainda o reclama como seu? – perguntou Zeus, ameaçadoramente. – Você reclama esta criança que procriou contrariando o nosso sagrado juramento?
– Eu admiti a minha transgressão – disse Poseidon. – E agora vou ouvi-lo falar.
Transgressão. Senti um nó na garganta. Era isso tudo o que eu era? Uma transgressão? O resultado do erro de um deus?
– Eu já o poupei uma vez – resmungou Zeus. – Ousando voar através dos meus domínios... bah! Eu devia tê-lo mandado pelos ares, para fora do céu pelo seu atrevimento.
– E correr o risco de destruir seu próprio raio-mestre? – perguntou Poseidon calmamente. – Vamos ouvi-lo, irmão.
Zeus resmungou mais um pouco.
– Ouvirei – resolveu. – E então decidirei se atirarei ou não este menino para fora do Olimpo.
– Perseu – disse Poseidon. – Olhe para mim.
Fiz isso, e não sei ao certo o que vi no seu rosto. Não havia sinal claro de amor ou aprovação. Nada para me encorajar. Era como olhar para o oceano: em alguns dias, era possível dizer como estava o seu humor. Na maioria dos dias, no entanto, era impossível de ler, misterioso. Tive a sensação de que Poseidon na verdade não sabia o que pensar de mim. Não sabia se estava feliz por ter-me como filho ou não. De um modo estranho, eu estava contente por Poseidon estar tão distante. Se ele tivesse tentado se desculpar, ou dito que me amava, ou mesmo sorrido, teria parecido falso. Como um pai humano, dando alguma desculpa pouco convincente por não estar presente. Eu poderia viver com isso. Afinal, eu mesmo também não estava muito seguro a respeito dele.
– Dirija-se ao Senhor Zeus, menino – disse-me Poseidon. – Conte a ele a sua história.
Então contei tudo a Zeus, exatamente como havia acontecido. Tirei da mochila o cilindro de metal, que começou a fagulhar na presença do Deus do Céu, e o pus aos seus pés. Houve um longo silêncio, quebrado apenas pelo crepitar do fogo no braseiro.
Zeus abriu a palma da sua mão. O raio voou para dentro dela. Quando ele fechou o punho, os pontos metálicos fulguraram com eletricidade, até ele ficar segurando o que parecia mais um relâmpago clássico, um dardo de seis metros feito de energia com centelhas chiantes que fez os meus cabelos se eriçarem.
– Sinto que o menino diz a verdade – murmurou Zeus. – Mas não é nada típico de Ares fazer uma coisa assim.
– Ele é orgulhoso e impulsivo – disse Poseidon. – É coisa de família.
– Senhor? – chamei. Ambos disseram:
– Sim?
– Ares não agiu sozinho. Outra pessoa – ou outra coisa teve a ideia.
Descrevi os meus sonhos e a sensação que tive na praia, o momentâneo hálito do mal que parecera parar o mundo e fizera Ares desistir de me matar.
– Nos meus sonhos – disse eu – a voz me disse para levar o raio ao Mundo Inferior. Ares insinuou que também estava tendo sonhos. Acho que ele estava sendo usado, assim como eu, para começar uma guerra.
– Você está acusando Hades, afinal? – perguntou Zeus.
– Não – disse eu. – Quer dizer, Senhor Zeus, eu estive na presença de Hades. A sensação na praia foi diferente. Era a mesma coisa que senti quando cheguei perto daquele abismo. Aquela era entrada para o Tártaro, não era? Alguma coisa poderosa e maligna está se agitando lá embaixo... alguma coisa ainda mais antiga que os deuses.
Poseidon e Zeus se entreolharam. Eles tiveram uma rápida e intensa discussão em grego antigo. Só peguei uma palavra. Pai. Poseidon fez algum tipo de sugestão, mas Zeus o cortou. Poseidon tentou discutir. Zeus ergueu a mão, zangado.
– Não vamos mais falar disso – disse Zeus. – Preciso ir pessoalmente purificar este raio nas águas de Lemnos, para remover a mácula humana do seu metal. – Ele se levantou e olhou para mim. Sua expressão se suavizou uma fração de um grau. – Você me prestou um serviço, menino. Poucos heróis poderiam ter conseguido tanto.
– Eu tive ajuda, senhor – disse eu. – Grover Underwood e Annabeth Chase...
– Para demonstrar minha gratidão, pouparei sua vida. Não confio em você, Perseu Jackson. Não gosto do que a sua chegada significa para o futuro do Olimpo. Mas, em nome da paz na família, eu o deixarei viver.
– Ahn... obrigado, senhor.
– Não ouse voar de novo. Não me deixe encontrá-lo aqui quando eu voltar. Ou irá provar este raio. E será a sua última sensação.
Um trovão sacudiu o palácio. Com um clarão ofuscante, Zeus se foi. Eu estava sozinho na sala do trono com meu pai.
– O seu tio – suspirou Poseidon – sempre teve um talento especial para saídas teatrais. Acho que ele teria se saído bem como o deus do teatro.
Um silêncio constrangedor.
– Senhor – disse eu – o que havia naquele abismo?
Poseidon olhou atentamente para mim.
– Você não adivinhou?
– Cronos – disse eu. – O rei dos Titãs.
Mesmo na sala do trono do Olimpo, longe do Tártaro, o nome Cronos escureceu o ambiente, e fez o fogo no braseiro não parecer mais tão quente nas minhas costas. Poseidon segurou o seu tridente.
– Na Primeira Guerra Mundial, Percy, Zeus cortou o nosso pai Cronos em mil pedaços, exatamente como Cronos fizera com seu próprio pai, Urano. Zeus lançou os restos de Cronos no mais escuro abismo do Tártaro. O exército dos Titãs foi dispersado, sua fortaleza na montanha sobre o Etna, destruída, seus monstruosos aliados foram expulsos para os cantos mais distantes da Terra. E, contudo, Titãs não podem morrer, não mais que nós, deuses. O que resta de Cronos ainda vive de algum modo hediondo, ainda consciente em seu sofrimento eterno, ainda com fome de poder.
– Ele está se curando – disse eu. – Ele vai voltar.
Poseidon sacudiu a cabeça.
– De tempos em tempos, no decorrer das eras, Cronos se agita. Ele entra nos pesadelos dos homens e exala pensamentos malignos. Desperta monstros inquietos das profundezas. Mas sugerir que ele pode erguer-se do abismo é outra coisa.
– É o que ele pretende, pai. É o que ele disse.
Poseidon ficou em silêncio por um bom tempo.
– O Senhor Zeus encerrou a discussão sobre o assunto. Ele não permitirá que se fale de Cronos. Você completou a sua missão, criança. É tudo o que precisa fazer.
– Mas... – eu me interrompi. Discutir não iria adiantar nada. Muito possivelmente, irritaria o único deus que eu tinha do meu lado. – Como... como queira, pai.
Um leve sorriso brincou nos lábios dele.
– A obediência não lhe vem naturalmente, não é?
– Não... senhor.
– Devo ter alguma culpa por isso, imagino. O mar não gosta de ser contido. – Ele se ergueu em toda a sua altura e pegou seu tridente. Então tremeluziu e ficou do tamanho de um homem normal, em pé diante de mim. – Você precisa ir, criança. Mas primeiro saiba que sua mãe retornou.
Olhei para ele, completamente perplexo.
– Minha mãe?
– Você a encontrará em casa. Hades a enviou quando recuperou seu elmo. Até mesmo o Senhor da Morte paga as suas dívidas.
Meu coração disparou. Eu mal podia acreditar.
– Você... você vai...
Eu queria perguntar se Poseidon viria comigo para vê-la, mas então percebi que isso era ridículo. Imaginei-me embarcando com o Deus do Mar em um táxi e levando-o para o Upper East Side. Se durante todos aqueles anos ele tivesse desejado ver minha mãe, teria visto. E também era preciso pensar que Gabe Cheiroso estava lá. Os olhos de Poseidon ficaram um pouco tristes.
– Quando você voltar para casa, Percy, precisará fazer uma escolha importante. Irá encontrar um pacote esperando por você no seu quarto.
– Um pacote?
– Você entenderá quando o vir. Ninguém pode escolher o seu caminho, Percy. Você terá de decidir.
Assenti, embora sem saber o que ele queria dizer.
– Sua mãe é uma rainha entre as mulheres – disse Poseidon saudosamente. – Não conheci nenhuma mulher mortal como ela em mil anos. Ainda assim... sinto muito por você ter nascido, criança. Eu trouxe para você um destino de herói, e um destino de herói nunca é feliz. Não passa de um destino trágico.
Tentei não me sentir magoado. Ali estava o meu próprio pai, dizendo que sentia muito por eu ter nascido.
– Eu não me importo, pai.
– Ainda não, talvez – disse ele. – Ainda não. Mas foi um erro imperdoável da minha parte.
– Vou deixá-lo, então. – Eu me inclinei, desajeitado. – Não... não vou incomodá-lo de novo.
Eu estava a cinco passos de distância quando ele chamou:
– Perseu. – Eu me virei. Havia uma luz diferente em seus olhos, um tipo flamejante de orgulho. – Você se saiu bem, Perseu. Não me entenda mal. O que quer que ainda faça, saiba que você é meu. Você é um verdadeiro filho do Deus do Mar.
Enquanto eu caminhava de volta pela cidade dos deuses, as conversas se interromperam. As musas pararam seu concerto. Pessoas, sátiros e náiades, todos se voltavam para mim, os rostos plenos de respeito e gratidão, e quando eu passava eles se ajoelhavam, como se eu fosse algum tipo de herói.
Quinze minutos depois, ainda em transe, eu estava de volta às ruas de Manhattan. Peguei um táxi para o apartamento da minha mãe, toquei a campainha, e lá estava ela – minha linda mãe, cheirando a hortelã e alcaçuz, e o cansaço e a preocupação se evaporaram do seu rosto assim que ela me viu. – Percy! Oh, graças a Deus! Oh, meu querido.
Ela me apertou até não poder mais. Ficamos no vestíbulo enquanto ela chorava e passava as mãos pelos meus cabelos. Eu admito – meus olhos também ficaram um pouco nublados. Eu tremia, de tão aliviado que estava por vê-la. Ela me contou que simplesmente aparecera no apartamento naquela manhã, deixando Gabe meio fora de si de tão apavorado. Não se lembrava de nada desde o Minotauro, e não pôde acreditar quando Gabe lhe disse que eu era um criminoso procurado, viajando pelo país e explodindo monumentos nacionais. Ficara louca de preocupação o dia inteiro porque não ouvira as notícias. Gabe a forçara a ir trabalhar, dizendo que ela precisava um mês de salário para compensar, e era melhor começar. Engoli a raiva e contei-lhe minha própria história. Tentei fazer que parecesse menos apavorante do que fora, mas não era fácil. Estava justamente chegando à luta com Ares quando a voz de Gabe irrompeu da sala de estar.
– Ei, Sally! Aquele bolo de carne já está pronto ou não?
Ela fechou os olhos.
– Ele não vai ficar muito feliz em vê-lo, Percy. A loja recebeu um milhão de telefonemas de Los Angeles hoje... alguma coisa sobre eletrodomésticos grátis. – Ah, sim. Quanto a isso...
Ela conseguiu sorrir fracamente.
– Só não o deixe ainda mais zangado, certo? Venha.
No mês em que estive fora, o apartamento se transformara em Gabelândia. Havia lixo no tapete até a altura dos tornozelos. O sofá tinha sido estofado de novo com latas de cerveja. Meias e roupas de baixo sujas estavam penduradas nos abajures. Gabe e três dos seus amigos cretinos estavam sentados à mesa jogando pôquer. Quando Gabe me viu, o charuto caiu da boca. A cara dele ficou mais vermelha que lava.
– Você é muito descarado de vir aqui, seu pequeno punk. Eu pensei que a polícia...
– Ele não é um fugitivo, afinal – interrompeu minha mãe. – Não é maravilhoso, Gabe?
Gabe olhou para um lado e para outro entre nós. Não parecia achar que a minha volta para casa fosse assim tão maravilhosa.
– Já não basta ter de devolver o dinheiro do seu seguro de vida, Sally – rosnou ele. – Me dê o telefone. Vou chamar a polícia.
– Gabe, não!
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Você disse não! Acha que eu vou ter de aguentar esse punk de novo? Ainda posso registrar queixa contra ele por destruir o meu Camaro.
– Mas...
Ele levantou a mão e minha mãe se encolheu. Pela primeira vez me dei conta de uma coisa. Gabe já tinha batido na minha mãe. Não sei quando, nem quanto. Talvez estivesse acontecendo há anos, quando eu não estava por perto. Um balão de raiva começou a se expandir no meu peito. Avencei para Gabe, instintivamente tirando minha caneta do bolso. Ele apenas riu.
– O que foi, punk? Vai escrever em mim? Encoste em mim, e irá para a cadeia para sempre, entendeu?
– Ei, Gabe – seu amigo Eddie interrompeu. – Ele é só uma criança.
Gabe olhou para ele irritado e macaqueou em voz de falsete:
– Ele é só uma criança! – Seus outros amigos riram como idiotas. – Eu vou ser bonzinho com você, punk. – Gabe mostrou os dentes manchados de tabaco. – Vou lhe dar cinco minutos para pegar suas coisas e dar o fora. Depois disso, chamo a polícia.
– Gabe! – implorou minha mãe.
– Ele fugiu – disse Gabe a ela. – Que continue fugido.
Eu estava sentindo uma comichão para destampar Contracorrente, mas mesmo que fizesse isso, a lâmina não podia ferir seres humanos. E Gabe, segundo a mais vaga das definições, era um ser humano. Minha mãe segurou meu braço.
– Por favor, Percy. Venha. Vamos para o seu quarto.
Deixei que ela me puxasse, as mãos ainda tremendo de raiva. Meu quarto tinha sido completamente abarrotado com o lixo de Gabe. Havia pilhas de baterias velhas de carro, um buquê apodrecido de flores de solidariedade com um cartão de alguém que assistira sua entrevista com Barbara Walters.
– Gabe está apenas chateado, querido – disse minha mãe. – Vou falar com ele mais tarde. Tenho certeza de que vai dar certo.
– Mamãe, nunca vai dar certo. Não enquanto Gabe estiver aqui.
Ela torceu as mãos nervosamente.
– Eu posso... vou levar você comigo para o trabalho durante o resto do verão. No outono talvez haja algum outro internato...
– Mamãe.
Ela baixou os olhos.
– Estou tentando, Percy. Eu só... só preciso de algum tempo.
Um pacote apareceu em cima da minha cama. Pelo menos, eu poderia jurar que não estava lá um momento antes. Era uma caixa de papelão surrada mais ou menos do tamanho certo para conter uma bola de basquete. O endereço na etiqueta estava na minha própria caligrafia:
Aos deuses
Monte Olimpo, 600° andar
Edifício Empire State
Nova York, NY
Com os melhores votos, Percy Jackson
No topo da caixa, em marcador preto, na caligrafia clara e forte de um homem, estava o endereço do nosso apartamento, e as palavras: RETORNAR AO REMETENTE. De repente entendi o que Poseidon me dissera no Olimpo. Um pacote. Uma decisão. O que quer que ainda faça, saiba que você é meu. Você é um verdadeiro filho do Deus do Mar. Olhei para a minha mãe.
– Mãe, você quer se livrar do Gabe?
– Percy, não é tão simples. Eu...
– Mãe, apenas me diga. Aquele cretino está batendo em você. Você quer que ele se vá ou não?
Ela hesitou, depois assentiu quase imperceptivelmente.
– Sim, Percy. Eu quero. E estou tentando reunir coragem para dizer a ele. Mas você não pode fazer isso por mim. Você não pode resolver os meus problemas.
Eu olhei para a caixa. Eu podia resolver o problema dela. Queria abrir aquele pacote, botá-lo sobre a mesa de pôquer e tirar o que havia dentro. Podia começar o meu próprio jardim de estátuas bem ali na sala de estar. E o que um herói grego faria nas histórias, pensei. É o que Gabe merece. Mas a história de um herói sempre termina em tragédia. Poseidon me dissera isso. Lembrei-me do Mundo Inferior. Pensei no espírito de Gabe à deriva nos Campos de Asfódelos, ou condenado a alguma tortura horrível atrás do arame farpado dos Campos da Punição – sentado em um eterno jogo de pôquer, mergulhado até a cintura em óleo fervente ou ouvindo música de ópera. Será que eu tinha o direito de mandar alguém para lá? Mesmo Gabe? Um mês atrás, eu não teria hesitado. Agora...
– Eu posso fazer isso – disse à minha mãe. – Uma espiada para o que há dentro desta caixa, e ele nunca mais a incomodará de novo.
Ela deu uma olhada para o pacote e pareceu entender imediatamente.
– Não, Percy – disse ela afastando-se. – Você não pode.
– Poseidon chamou você de rainha – contei-lhe. – Ele disse que não conheceu nenhuma mulher como você em mil anos.
Suas faces coraram.
– Percy...
– Você merece coisa melhor do que isso, mãe. Você devia ir para a faculdade, tirar o seu diploma. Podia escrever o seu romance, conhecer um cara legal, quem sabe, e viver numa bela casa. Você não precisa mais me proteger ficando com Gabe, Deixe que eu me livre dele.
Ela enxugou uma lágrima do rosto.
– Você se parece tanto com o seu pai – disse ela. – Uma vez propôs parar a maré por mim. Propôs construir um palácio para mim no fundo do mar, achava que podia resolver todos os meus problemas com um aceno de mão.
– O que há de errado nisso?
Seus olhos multicoloridos pareceram investigar dentro de mim.
– Eu acho que você sabe, Percy, Eu acho que você é parecido o bastante comigo para entender. Se é para a minha vida ter algum significado, tenho de vivê-la eu mesma. Não posso deixar que um deus cuide de mim... ou meu filho, Eu preciso... encontrar a coragem sozinha, a sua missão me fez lembrar disso.
Ouvimos o som das fichas de pôquer e pragas, e a ESPN n televisão da sala de estar.
– Vou deixar a caixa – disse eu – se ele a ameaçar...
Ela empalideceu, mas assentiu.
– Aonde você vai, Percy?
– Colina Meio-Sangue.
– Passar o verão... ou para sempre?
– Ainda não sei.
Nossos olhos se encontraram, e eu senti que tínhamos um acordo. Veríamos como estariam as coisas no fim do verão. Ele beijou a minha testa.
– Você será um herói, Percy, o maior de todos. Passei os olhos pelo quarto pela última vez, tinha a sensação de que nunca mais o veria de novo. Então fui com minha mãe até a porta da frente.
– Indo embora tão cedo, punk? – gritou Gabe atrás de mim. – Já vai tarde!
Senti uma última ponta de dúvida. Como eu podia rejeitar a oportunidade perfeita para me vingar dele? Eu estava indo embora daqui sem salvar a minha mãe.
– Ei, Sally! – berrou ele. – E aquele bolo de carne, hein? Uma expressão de raiva, dura como aço, brilhou nos olhos da minha mãe, e eu pensei, quem sabe, talvez eu a estivesse deixando em boas mãos afinal: as dela mesma.
– O bolo de carne já está saindo, meu bem – disse ela a Gabe. – Um bolo de carne surpresa.
Olhou para mim e piscou. A última coisa que vi quando a porta se fechou foi minha mãe olhando para Gabe com jeito de quem imagina que ele daria uma ótima estátua de jardim.
Capítulo 22 - A profecia se cumpre
Fomos os primeiros heróis a retornar vivos à Colina Meio-Sangue desde Luke, portanto é claro que todos nos trataram como se tivéssemos ganho algum prêmio de reality show na tevê. De acordo com a tradição do acampamento, usamos coroas de louros em um grande banquete preparado em nossa honra, depois lideramos um cortejo até a fogueira, onde queimamos as mortalhas que tinham sido feitas para nós na nossa ausência. A mortalha de Annabeth era lindíssima – seda cinzenta com corujas bordadas – e eu disse que era uma pena não poder enterrá-la com ela. Ela me deu um soco e me mandou calar a boca. Por ser filho de Poseidon, eu não tinha nenhum companheiro de chalé, e assim o chalé de Ares se ofereceu para fazer a minha mortalha. Eles pegaram um lençol velho e pintaram carinhas sorridentes nas bordas, com XX no lugar dos olhos, e a palavra PERDERDOR em tamanho realmente grande no meio. Foi divertido queimá-la. Enquanto o chalé de Apoio liderava a cantoria e passava guloseimas, fui rodeado pelos meus companheiros do chalé de Hermes, pelos amigos de Annabeth de Atena e pelos colegas sátiros de Grover, que estavam admirando a licença de buscador nova em folha que ele recebera do Conselho dos Anciãos de Casco Fendido.
O conselho chamara o desempenho de Grover na missão de “Bravo a ponto de dar indigestão.”
Os únicos que não estavam com um espírito festivo eram Clarisse e seus companheiros de chalé, cujos olhares venenosos me diziam que jamais me perdoariam por envergonhar o pai deles. Por mim, tudo bem. Até mesmo o discurso de boas-vindas de Dioniso foi insuficiente para abafar o meu bom humor.
– Sim, sim, o molequinho não se deixou matar e agora vai ficar ainda mais presunçoso. Bem, um viva para isso. Entre outros comunicados, não haverá corridas de canoas neste sábado...
Mudei-me de volta para o chalé 3, mas ele não parecia mais tão solitário. Tinha os meus amigos para treinar durante o dia. À noite, ficava acordado e ouvia o mar, sabendo que meu pai estava lá fora. Talvez ele ainda não se sentisse muito seguro a meu respeito, talvez ainda não quisesse que eu tivesse nascido, mas estava observando. E, até agora, estava orgulhoso do que eu havia feito. Quanto à minha mãe, ela teve chance de uma vida nova. A carta dela chegou uma semana depois que voltei ao acampamento. Ela me contou que Gabe partira misteriosamente – desaparecera da face do planeta, de fato. Ela deu queixa do desaparecimento dele à polícia, mas tinha uma sensação engraçada de que jamais o encontrariam. Mudando completamente de assunto, ela tinha vendido a sua primeira escultura de concreto em tamanho natural, intitulada O jogador de pôquer, para um colecionador, através de uma galeria de arte do Soho. Recebera tanto dinheiro por ela que dera entrada em um novo apartamento e fizera o pagamento do primeiro semestre do seu curso na Universidade de Nova York. A galeria do Soho estava clamando por mais trabalhos dela, que eles chamaram de "um grande passo do neo-realismo do superfeio". Mas não se preocupe, escreveu a minha mãe. Para mim, chega de escultura. Livrei-me daquela caixa de ferramentas que você deixou para mim. Já é hora de eu voltar a escrever. No fim, ela escreveu um P.S.: Percy, encontrei uma boa escola particular aqui na cidade. Fiz um depósito para reservar um lugar para você, caso queira se matricular na sétima série. Você poderá morar em casa. Mas, se quiser ficar o ano inteiro na Colina Meio-Sangue, vou entender. Dobrei a carta cuidadosamente e a pus na minha mesa de cabeceira. Todas as noites antes de dormir eu a leio de novo, e tento decidir como responder a ela.
No Quatro de Julho, o acampamento inteiro se reuniu na praia para um espetáculo pirotécnico por conta do chalé 9. Como filhos de Hefesto, não iriam se contentar com explosões comuns em vermelho, branco e azul. Eles ancoraram uma barcaça longe da costa e a carregaram com foguetes do tamanho de mísseis Patriot. De acordo com Annabeth, que já tinha visto o espetáculo antes, as explosões seriam tão bem sequenciadas que pareceriam quadros de animação no céu. O final deveria ser um par de guerreiros espartanos de trinta metros de altura que iriam crepitar para a vida acima do oceano, travar uma batalha e então explodir em um milhão de cores. Enquanto Annabeth e eu estendíamos toalhas de piquenique, Grover apareceu para se despedir de nós. Usava os jeans, a camiseta e os tênis de sempre, mas nas últimas semanas começara a parecer mais velho, quase com idade de secundarista. Seu cavanhaque ficara mais espesso. Ganhara peso. Seus chifres haviam crescido pelo menos três centímetros, de modo que agora tinha de usar o seu boné rastafári o tempo todo para passar por ser humano.
– Estou de partida – disse ele. – Vim só dizer... bem, vocês sabem.
Tentei me sentir feliz por ele. Afinal, não era todo dia que um sátiro conseguia permissão para procurar o grande deus Pan. Mas era difícil dizer adeus. Eu só conhecia Grover fazia um ano, e, no entanto ele era o meu amigo mais antigo. Annabeth deu-lhe um abraço. Ela lhe disse para usar sempre os seus pés falsos. Perguntei-lhe onde iria procurar primeiro.
– Tipo segredo – disse ele, parecendo embaraçado. – Gostaria que vocês pudessem vir comigo, mas seres humanos e Pan...
– A gente entende – disse Annabeth. – Você tem latas suficientes para a viagem?
– Sim.
– E se lembrou das suas flautas de bambu?
– Puxa, Annabeth – resmungou ele. – Você parece uma velha mamãe-cabra. Mas ele não pareceu aborrecido de verdade. Ele agarrou sua bengala e jogou uma mochila por cima dos ombros. Parecia um caroneiro desses que se veem nas estradas – nada parecido com o menino baixinho que eu costumava defender dos valentões na Academia Yancy.
– Bem – disse ele – desejem-me boa sorte.
Ele deu outro abraço em Annabeth. Bateu no meu ombro, e então retornou através das dunas. Fogos de artifício explodiram acima de nós: Hércules matando o leão da Neméia, Ártemis perseguindo o javali, George Washington (que, aliás, era um filho de Atena) cruzando o rio Delaware.
– Ei, Grover – chamei. Ele se voltou à margem do bosque. – Aonde quer que esteja indo, espero que façam boas enchiladas.
Grover sorriu, e se foi; as árvores se fechando em volta dele.
– Nós o veremos de novo – disse Annabeth.
Tentei acreditar nisso. O fato de que nenhum buscador jamais voltara em dois mil anos... bem, decidi não pensar nisso. Grover ia ser o primeiro. Tinha de ser.
Julho se foi. Eu passava os meus dias bolando novas estratégias para a captura da bandeira e fazendo alianças com os outros chalés para manter o estandarte fora das mãos de Ares. Cheguei até o topo da parede de escalada pela primeira vez sem ser tostado pela lava. De tempos em tempos, eu passava pela Casa Grande, dava uma olhada nas janelas do sótão e pensava no Oráculo. Tentei convencer a mim mesmo que a sua profecia se completara.
Você deve ir para o oeste, e enfrentar o deus que se tornou desleal. Estive lá, fiz isso – mesmo que no fim o deus traidor fosse Ares, e não Hades. Você deve encontrar o que foi roubado e devolver em segurança. Confere. Um raio-mestre entregue. Um elmo das trevas de volta na cabeça untuosa de Hades. Você será traído por aquele que o chama de amigo.Essa linha ainda me incomodava. Ares fingira ser meu amigo e depois me traíra. Devia ser isso que o Oráculo queria dizer... E no fim não conseguirá salvar aquilo que mais importa.Eu não conseguira salvar minha mãe, mas só porque eu a deixara se salvar sozinha, e sabia que era a coisa certa a fazer. Então por que ainda estava incomodado?
A última noite de verão chegou depressa demais. Os campistas fizeram uma última refeição juntos. Queimamos parte do nosso jantar para os deuses. Junto à fogueira, os conselheiros mais velhos entregaram as contas de fim de verão. Ganhei o meu próprio colar de couro, e quando vi a conta pelo meu primeiro verão, fiquei contente porque a luz da fogueira encobriu o vermelho na minha cara. O desenho era preto como piche, com um tridente verde-mar cintilando no centro.
– A escolha foi unânime – anunciou Luke. – Esta conta comemora o primeiro Filho do Deus do Mar neste acampamento, e a missão que ele assumiu para a parte mais escura do Mundo Inferior para impedir uma guerra!
O acampamento inteiro se pôs de pé e aplaudiu. Mesmo o chalé de Ares se sentiu na obrigação de levantar. O chalé de Atenas empurrou Annabeth para a frente para que ela pudesse compartilhar os aplausos. Acho que nunca na vida me senti ao mesmo tempo tão feliz ou e tão triste como naquele momento. Finalmente encontrara uma família, gente que se preocupava comigo e achava que eu tinha feito alguma coisa de modo certo. E, pela manhã, a maior parte deles ficaria fora o resto do ano. Na manhã seguinte encontrei uma carta padronizada na minha mesa de cabeceira. Soube que devia ter sido preenchida por Dioníso, pois ele insistia teimosamente em errar o meu nome:
Caro Peter Johnson,
Se você pretende permanecer no Acampamento Meio-Sangue o ano inteiro, precisa informar a Casa Grande até o meio-dia de hoje. Caso não anuncie suas intenções, presumiremos que você vagou o seu chalé ou morreu de uma morte horrível. Harpias da limpeza começarão seu trabalho ao pôr do sol. Elas estarão autorizadas a comer qualquer campista não registrado. Todos os artigos pessoais deixados para trás serão incinerados no poço de lava. Tenha um bom dia!
Senhor D (Dioniso) Diretor do Acampamento, Conselheiro Olimpiano n° 12.
Essa é mais uma questão do transtorno do déficit de atenção. Os prazos simplesmente não existem para mim até que não tenha mais jeito. O verão acabara, e eu ainda não havia respondido para a minha mãe, nem para o acampamento, se iria ficar. Agora tinha apenas algumas horas para decidir. A decisão tinha tudo para ser fácil. Quer dizer, nove meses treinando para herói, ou nove meses sentado numa sala de aula – fala sério! Mas havia a minha mãe para considerar. Pela primeira vez eu tinha oportunidade de morar com ela por um ano inteiro, sem Gabe. Tinha chance de estar em casa e perambular pela cidade nas horas livres. Lembrei-me do que Annabeth dissera tanto tempo atrás sobre a nossa missão: O mundo real é onde os monstros estão. É onde a gente aprende se serve para alguma coisa ou não.
Pensei no destino de Thalia, filha de Zeus. Fiquei pensando quantos monstros me atacariam se eu deixasse a Colina Meio-Sangue. Se eu ficasse em um só lugar durante todo um ano escolar, sem Quíron e meus amigos em volta para me ajudar, será que minha mãe e eu sobreviveríamos até o próximo verão? E isso presumindo que os testes de ortografia e os ensaios de cinco parágrafos não me matassem. Decidi ir até a arena e praticar um pouco de esgrima. Talvez isso me clareasse a cabeça.
A área do acampamento estava deserta na maior parte, tremeluzindo no calor de agosto. Todos os campistas estavam nos seus chalés fazendo as malas, ou correndo de um lado para outro com vassouras e esfregões, preparando-se para a inspeção final. Argos estava ajudando algumas filhas de Afrodite a carregar suas malas e estojos de maquiagem Gucci para o outro lado da colina, onde o ônibus do acampamento estaria esperando para levá-las ao aeroporto.
Não pense em partir ainda, disse para mim mesmo. Apenas treine. Cheguei à arena dos espadachins e descobri que Luke tivera a mesma ideia. Sua sacola estava jogada na beirada da arena. Ele estava treinando sozinho, investindo violentamente contra bonecos com uma espada que eu nunca tinha visto antes. Devia ser uma espada toda de aço, pois decepava de um golpe as cabeças dos bonecos e atravessava com estocadas as suas tripas recheadas de palha. Sua camisa laranja de conselheiro pingava de suor. A expressão dele era tão intensa que dava para pensar que sua vida estava realmente em perigo.
Eu assisti, fascinado, enquanto ele destripava toda a fileira de bonecos, cortando fora os membros e basicamente os reduzindo a uma pilha de palha e armaduras. Eram apenas bonecos, mas ainda assim eu não podia deixar de ficar assombrado com a habilidade de Luke. O cara era um guerreiro incrível. Aquilo me fez pensar, novamente, como ele podia ter falhado em sua missão. Por fim ele me viu e interrompeu-se no meio de um golpe.
– Percy.
– Ahn, desculpe – disse eu, embaraçado. – Eu só...
– Tudo bem – disse ele, abaixando a espada. – Estava só dando uma treinada de último minuto.
– Aqueles bonecos nunca mais vão incomodar ninguém.
Luke encolheu os ombros.
– Nós fazemos novos todo verão.
Agora que a espada não estava mais rodopiando de um lado para outro, pude ver algo de estranho nela. A lâmina era feita com dois tipos de metal diferentes – um fio de bronze, o outro de aço.
Luke reparou que eu estava olhando.
– Ah, isso? Brinquedo novo. Esta é a Malvada.
– Malvada?
Luke virou a lâmina na luz, e a fez brilhar de um jeito maligno.
– Um lado é de bronze celestial. O outro é de aço temperado. Funciona tanto em mortais como em imortais.
Pensei no que Quíron tinha me dito quando eu comecei a minha missão – que um herói jamais deve ferir mortais a não ser que seja absolutamente necessário.
– Eu não sabia que eles podiam fazer armas como esta.
– Eles provavelmente não – concordou Luke. – Esta aqui é única. – Ele me deu um sorrisinho mínimo e então enfiou a espada na bainha. – Escute. Eu estava indo procurar por você. O que me diz de irmos até a floresta uma última vez, para procurar algo para enfrentar?
Não sei por que hesitei. Devia ter me sentido aliviado por Luke estar sendo tão amigável. Desde que eu voltara da missão ele vinha agindo de modo um pouco distante. Estava com medo de que ele estivesse ressentido com toda a atenção que eu recebera.
– Você acha que é uma boa ideia? – perguntei. – Quero dizer...
– Ora, vamos. – Ele remexeu na sua sacola e tirou de lá uma embalagem de seis Cocas. – Bebidas por minha conta.
Olhei para as Cocas, me perguntando onde diabo as teria conseguido. Não havia refrigerantes mortais comuns na loja do acampamento. Não havia como consegui-los a não ser que a gente falasse com um sátiro, talvez. Naturalmente, as taças mágicas do jantar se encheriam com qualquer coisa que a gente quisesse, mas não tinham exatamente o mesmo gosto de uma Coca de verdade, saída da lata. Açúcar e cafeína. Minha força de vontade desmoronou.
– Claro – decidi. – Por que não?
Fomos andando até a floresta e perambulamos sem rumo à procura de algum tipo de monstro para enfrentar, mas estava quente demais. Todos os monstros com um mínimo de bom senso deviam estar fazendo a sesta nas suas cavernas agradáveis e frescas. Encontramos um lugar à sombra junto ao regato onde eu quebrara a lança de Clarisse durante meu primeiro jogo de captura da bandeira. Sentamo-nos em uma grande pedra, bebemos as nossas Cocas e ficamos olhando para a luz do sol na floresta. Depois de algum tempo, Luke disse:
– Sente falta de estar em uma missão?
– Com monstros me atacando a cada passo? Fala sério!
Luke ergueu uma sobrancelha.
– Sim, eu sinto falta – admiti.
– E você?
Uma sombra passou pelo seu rosto. Eu estava acostumado a ouvir as meninas dizerem como Luke era bonito, mas naquele momento ele pareceu cansado, zangado e nem um pouco bonito. Seu cabelo loiro estava cinzento à luz do sol. A cicatriz no rosto parecia mais funda que de costume. Parecia estar vendo um velho.
– Vivo na Colina Meio-Sangue o ano inteiro desde que tinha catorze anos – contou-me. – Desde que Thalia... bem, você sabe. Treinei, treinei e treinei. Nunca cheguei a ser um adolescente normal, lá fora no mundo real. Então eles me jogaram numa missão, e quando voltei, foi tipo, "Certo, o passeio acabou. Passe bem".
Ele amarrotou a sua Coca e a atirou no regato, o que realmente me chocou. Uma das primeiras coisas que a gente aprende no Acampamento Meio-Sangue é: não jogue lixo no chão. Você será repreendido pelas ninfas e náiades. Elas ajustarão as contas. Você cai na cama uma noite e encontra os lençóis cheios de centopeias e lama.
– Para o diabo com as coroas de louros – disse Luke. – Não vou terminar como aqueles troféus empoeirados no sótão da Casa Grande.
– Você está parecendo alguém que vai embora.
Luke me deu um sorriso torto.
– Oh, eu estou indo embora, sem dúvida, Percy. Trouxe você aqui para dizer adeus.
Ele estalou os dedos. Um pequeno fogo queimou um buraco no chão aos meus pés. De lá, saiu se arrastando alguma coisa preta e brilhante, mais ou menos do tamanho da minha mão. Um escorpião. Comecei a procurar a minha caneta. – Eu não faria isso – advertiu Luke. – Escorpiões das profundezas podem pular até cinco metros. Seu ferrão pode perfurar as suas roupas. Você estaria morto em sessenta segundos.
– Luke, o que... – Então caiu a ficha. Você será traído por aquele que o chama de amigo. – Você – disse eu.
Ele se levantou calmamente e sacudiu o pó dos seus jeans. O escorpião não lhe deu atenção. Seus olhos pequenos e brilhantes continuavam fixos em mim, apertando as pinças enquanto se arrastava para cima do meu sapato.
– Eu vi muita coisa lá fora no mundo, Percy – disse Luke. – Você não sentiu... a escuridão se acumulando, os monstros ficando mais fortes? Não percebeu como tudo é inútil? Todos os feitos heroicos... Nós não passamos de peões dos deuses. Eles já deviam ter sido derrubados há milhares de anos, mas persistem, graças a nós, meios-sangues. Eu não podia acreditar no que estava acontecendo.
– Luke... você está falando dos nossos pais – disse eu.
Ele riu.
– E por isso eu preciso amá-los? A sua preciosa "civilização ocidental" é uma doença, Percy. Ela está matando o mundo. O único meio de detê-la é queimá-la completamente e começar tudo de novo com algo mais honesto.
– Você é tão louco quanto Ares.
Seus olhos flamejaram.
– Ares é um tolo. Ele nunca percebeu quem é o verdadeiro mestre a quem está servindo. Se eu tivesse tempo, Percy, poderia explicar. Mas infelizmente você não vai viver tanto.
O escorpião se arrastou para cima da perna das minhas calças. Tinha de haver um meio de sair dessa. Eu precisava de tempo para pensar.
– Cronos – disse eu. – É a ele que você serve.
O ar ficou mais frio.
– Você devia ter cuidado com nomes – avisou Luke.
– Cronos fez você roubar o raio-mestre e o elmo. Ele falou com você nos seus sonhos.
O olho de Luke se contraiu.
– Ele falou com você também, Percy. Devia ter ouvido.
– Ele está fazendo uma lavagem cerebral em você, Luke.
– Você está errado. Ele me mostrou que os meus talentos estão sendo desperdiçados. Você sabe qual foi a minha missão dois anos atrás, Percy? Meu pai, Hermes, queria que eu roubasse um pomo de ouro do jardim das Hespérides e o levasse ao Olimpo. Depois de todo o treinamento que fiz, aquilo foi o melhor em que ele pôde pensar.
– Essa não é uma missão fácil – disse eu. – Hércules fez isso.
– Exatamente – disse Luke. – Onde está a glória em repetir o que outros já fizeram? Tudo o que os deuses sabem fazer é repetir o passado. Meu coração não estava naquilo. O dragão do jardim me deu isto – ele apontou para a cicatriz – e quando voltei, tudo o que ganhei foi piedade. Eu queria destruir o Olimpo pedra por pedra naquele momento, mas esperei pelo momento certo. Comecei a sonhar com Cronos. Ele me convenceu a roubar alguma coisa que valesse a pena, algo que nenhum herói jamais tivera a coragem de pegar. Quando fomos naquela excursão do solstício de inverno, enquanto os outros campistas dormiam, entrei furtivamente na sala do trono e peguei o raio-mestre de Zeus bem em cima da cadeira dele. O elmo das trevas de Hades também. Você não tem ideia como foi fácil. Os olimpianos são tão arrogantes; eles nunca nem sonharam que alguém se atrevesse a roubá-los. A segurança deles é horrível. Eu já estava a meio caminho através de New Jersey antes de ouvir as tempestades, e soube que eles tinham descoberto o meu roubo.
O escorpião agora estava parado no meu joelho, me olhando com seus olhos brilhantes. Tentei manter a voz no mesmo nível.
– Então por que não levou os objetos para Cronos? – O sorriso de Luke vacilou.
– Eu... eu fiquei confiante demais. Zeus mandou seus filhos e filhas para encontrar o raio roubado: Ártemis, Apolo, meu pai, Hermes. Mas foi Ares quem me pegou. Eu podia tê-lo vencido, mas não fui bastante cuidadoso. Ele me desarmou, tomou de mim os objetos de poder, ameaçou devolvê-los ao Olimpo e me queimar vivo. Então a voz de Cronos veio a mim e me falou o que dizer. Pus na cabeça de Ares a ideia de uma grande guerra entre os deuses. Disse que tudo o que ele teria de fazer seria esconder os objetos por algum tempo e ficar assistindo enquanto os outros lutavam. Um brilho perverso surgiu nos olhos de Ares. Eu sabia que ele estava fisgado. Ele me deixou ir, e eu voltei ao Olimpo antes que alguém notasse a minha ausência. – Luke sacou a sua nova espada. Ele correu o polegar pela parte achatada da lâmina, como se estivesse hipnotizado por sua beleza. – Depois, o Senhor dos Titãs... e-ele me castigou com pesadelos. Eu jurei não falhar outra vez. De volta ao Acampamento Meio-Sangue, em meus sonhos, me foi dito que um segundo herói chegaria, um que poderia ser enganado para levar o raio e o elmo o resto do caminho, de Ares até o Tártaro.
– Você convocou o cão infernal aquela noite na floresta.
– Tínhamos de fazer Quíron pensar que o acampamento não era seguro para você, e assim ele iria dar início à sua missão. Tínhamos de confirmar seus temores de que Hades estava atrás de você. E funcionou.
– Os tênis voadores estavam amaldiçoados – disse eu. – Eles deveriam me arrastar com a mochila para dentro do Tártaro.
– E teriam, se você os estivesse usando. Mas você os deu ao sátiro, o que não era parte do plano. Grover bagunça tudo o que ele toca. Confundiu até a maldição. – Luke baixou os olhos para o escorpião, que estava agora parado na minha coxa. – Você devia ter morrido no Tártaro, Percy. Mas não se preocupe. Vou deixá-lo com o meu pequeno amigo para corrigir as coisas.
– Thalia deu a vida dela para salvá-lo – disse eu rangendo os dentes. – E é assim que você retribui?
– Não fale de Thalia! – berrou ele. – Os deuses a deixaram morrer! Essa é uma das muitas coisas pelas quais eles pagarão.
– Você está sendo usado, Luke. Você e Ares, os dois. Não dê ouvidos a Cronos.
– Eu estou sendo usado? – A voz de Luke ficou estridente. – Olhe para você mesmo. O que o seu pai já fez por você? Cronos se erguerá. Você apenas retardou os seus planos. Ele irá lançar os olimpianos no Tártaro e mandará a humanidade de volta para as cavernas. Todos menos os mais fortes; aqueles que o servem.
– Chame de volta o seu bicho rastejante – disse eu. – Se você é tão forte, lute comigo você mesmo.
Luke sorriu.
– Boa tentativa, Percy. Mas eu não sou Ares. Você não pode me engabelar. Meu senhor está esperando, e ele tem muitas missões para mim.
– Luke...
– Adeus, Percy. Uma nova Idade do Ouro está chegando. Você não será parte dela. Ele traçou um arco com a espada e desapareceu numa onda de escuridão. O escorpião deu o bote.
Eu o joguei de lado com a mão e destampei a espada. A coisa pulou em cima de mim e eu a cortei ao meio no ar. Estava a ponto de me congratular quando olhei para a minha mão. Na palma havia um enorme vergão vermelho, que destilava uma secreção amarela e fumegante. A coisa me pegara, afinal. Meus ouvidos latejavam. Minha visão ficou embaçada. A água, pensei. Ela já me curara antes. Cambaleei até o regato e mergulhei a mão, mas nada pareceu acontecer. O veneno era forte demais. Minha visão estava escurecendo. Eu mal conseguia ficar em pé. Sessenta segundos, Luke me dissera. Eu tinha de voltar ao acampamento. Se desmaiasse aqui, meu corpo seria o jantar de algum monstro. Ninguém jamais saberia o que aconteceu. Minhas pernas pareciam feitas de chumbo. Minha testa queimava. Fui cambaleando até o acampamento, e as ninfas despertaram de suas árvores.
– Socorro – grasnei. – Por favor...
Duas delas seguraram os meus braços e me puxaram para frente. Lembro-me de chegar até a clareira, de um conselheiro gritando por ajuda, de um centauro tocando uma trombeta de concha. Então tudo escureceu.
Acordei com um canudinho na boca. Estava bebendo alguma coisa que tinha gosto de biscoitos de flocos de chocolate líquidos. Néctar. Abri os olhos. Estava reclinado na cama no quarto de doentes da Casa Grande, a mão direita enfaixada como um pedaço de pau. Argos montava guarda no canto. Annabeth estava sentada ao meu lado, segurando o copo de néctar e enxugando a minha testa com uma toalha.
– Aqui estamos nós outra vez – disse eu.
– Seu idiota – disse Annabeth, e foi como eu percebi que ela estava radiante por me ver consciente. – Você estava verde e ficando cinzento quando o encontramos. Se não fosse o tratamento de Quíron...
– Vamos, vamos – disse a voz de Quíron. – A constituição de Percy merece parte do crédito.
Ele estava sentado perto do pé da minha cama em forma humana, e foi por isso que eu não o notara antes. Sua parte inferior estava magicamente compactada na cadeira de rodas, e a parte superior usava casaco e gravata. Ele sorriu, mas seu rosto parecia cansado e pálido, como quando passava a noite em claro corrigindo provas de latim.
– Como está se sentindo? – perguntou.
– Como se as minhas entranhas tivessem sido congeladas e depois assadas no micro-ondas.
– Apropriado, considerando que foi veneno de escorpião das profundezas. Agora você tem de me contar, se puder, exatamente o que aconteceu.
Entre goles de néctar, contei-lhes a história. O quarto ficou em silêncio por um longo tempo.
– Eu não posso acreditar que Luke... – A voz de Annabeth vacilou. Sua expressão ficou zangada e triste. – Sim. Sim, eu posso acreditar. Que os deuses o amaldiçoem... Ele nunca mais foi o mesmo depois da sua missão.
– Isso deve ser relatado ao Olimpo – murmurou Quíron. – Irei imediatamente.
– Luke está lá fora agora – disse eu. – Preciso ir atrás dele.
Quíron sacudiu a cabeça.
– Não, Percy. Os deuses...
– Nem mesmo falam sobre Cronos – disparei. – Zeus declarou o assunto encerrado!
– Percy, eu sei que é difícil. Mas você não deve correr atrás de vingança. Você não está preparado. Eu não gostei, mas parte de mim suspeitava que Quíron estava certo. Bastava uma olhada para a minha mão e dava para ver que não haveria lutas de espada tão cedo.
– Quíron... a sua profecia do Oráculo... era sobre Cronos, não era? Eu estava nela? E Annabeth?
Quíron olhou nervosamente para o teto.
– Percy, não cabe a mim...
– Você recebeu ordens de não falar comigo sobre isso, não foi?
Seus olhos eram solidários, mas tristes.
– Você será um grande herói, criança. Darei o melhor de mim para prepará-lo. Mas se estou certo quanto ao caminho à sua frente... – O trovão ribombou acima, chacoalhando as janelas. – Está certo! – gritou Quíron. – Perfeito! – Ele suspirou com frustração. – Os deuses têm suas razões, Percy. Saber demais sobre o próprio futuro nunca é uma boa coisa.
– Não podemos simplesmente ficar sentados sem fazer nada – disse eu.
– Nós não vamos ficar sentados – prometeu Quíron. – Mas você precisa ter cuidado. Cronos quer que você seja destruído. Ele quer a sua vida interrompida, os seus pensamentos obscurecidos por medo e raiva. Não dê a ele o que ele quer. Treine pacientemente. O seu momento chegará.
– Presumindo que eu esteja vivo até lá.
Quíron pousou a mão no meu tornozelo.
– Você terá de confiar em mim, Percy. Você viverá. Mas primeiro precisa decidir seu caminho para o próximo ano. Não posso dizer a você qual é a escolha certa... – Tive a impressão de que ele tinha uma opinião muito bem definida, e estava usando toda a sua força de vontade para não me aconselhar. – Mas você precisa decidir se vai ficar no Acampamento Meio-Sangue o ano inteiro, ou se vai voltar ao mundo mortal para a sétima série e ser um campista de verão. Pense nisso. Quando eu voltar do Olimpo, você terá de me contar a sua decisão.
Eu quis protestar. Quis lhe fazer mais perguntas. Mas sua expressão me disse que não haveria mais discussão; ele já dissera tudo o que podia.
– Estarei de volta assim que puder – prometeu Quíron. – Argos o protegerá.
Ele lançou um olhar para Annabeth.
– Ah, e minha querida... quando estiver pronta, eles estão aqui.
– Quem está aqui? – perguntei.
Ninguém respondeu. Quíron rodou para fora do quarto. Ouvi o som metálico abafado das rodas da sua cadeira descendo cautelosamente os degraus da frente, dois de cada vez. Annabeth estudou o gelo na minha bebida.
– O que está errado? – perguntei a ela.
– Nada. – Ela pôs o copo sobre a mesa. – Eu... apenas aceitei o seu conselho sobre algo. Você... ahn... precisa de alguma coisa?
– Sim. Ajude-me a levantar. Quero ir para fora.
– Percy, não é uma boa ideia.
Arrastei as pernas para fora da cama. Annabeth me agarrou antes que eu desabasse no chão. Uma onda de náusea me acometeu. Annabeth disse:
– Eu falei...
– Estou ótimo – insisti.
Eu não queria ficar deitado na cama como um inválido enquanto Luke estava lá fora planejando destruir o mundo ocidental. Consegui dar um passo para a frente. Depois outro, ainda me apoiando pesadamente em Annabeth. Argos nos seguiu para fora, mas manteve distância. Quando chegamos à varanda, meu rosto estava molhado de suor. Meu estômago se contorcia em nós. Mas eu conseguira ir até a cerca. Estava anoitecendo. O acampamento parecia completamente deserto. Os chalés estavam escuros e a quadra de vôlei, silenciosa. Nenhuma canoa cortava a superfície do lago. Além dos bosques e dos campos de morangos, o estreito de Long Island brilhava com os últimos raios do sol.
– O que você vai fazer? – perguntou-me Annabeth.
– Eu não sei.
Disse a ela que tinha a sensação de que Quíron queria que eu ficasse o ano inteiro, para ter mais tempo de treinamento individual, mas eu não tinha certeza de que era isso o que queria. Porém admiti que me sentia mal por deixá-la sozinha, com Clarisse por companhia... Annabeth apertou os lábios e então disse baixinho:
– Eu vou passar o ano em casa, Percy.
Eu olhei para ela.
– Você quer dizer, com o seu pai?
Ela apontou para o cume da Colina Meio-Sangue. Junto ao pinheiro de Thalia, bem no limite das fronteiras mágicas do acampamento, havia uma família em silhueta – duas crianças pequenas, uma mulher e um homem alto de cabelos loiros. Pareciam estar aguardando. O homem segurava uma mochila parecida com a que Annabeth pegara no Parque Aquático em Denver.
– Eu escrevi uma carta para ele quando voltamos – disse Annabeth. – Como você sugeriu. Eu disse a ele... que sentia muito. Que iria para casa passar o ano escolar se ele ainda me quisesse. Ele respondeu na mesma hora. Nós decidimos... que íamos tentar de novo.
– Foi preciso coragem para isso.
Ela apertou os lábios.
– Você não vai tentar nada de estúpido durante o ano escolar, vai? Pelo menos... não sem me mandar uma mensagem de íris?
Consegui sorrir.
– Não vou procurar encrenca. Normalmente eu não preciso.
– Quando eu voltar no próximo verão – disse ela – vamos caçar Luke. Vou pedir uma missão, mas se não tivermos aprovação, vamos sair escondidos e fazer isso do mesmo jeito. De acordo?
– Parece um plano digno de Atena.
Ela estendeu a mão. Eu a apertei.
– Cuide-se, Cabeça de Alga – disse Annabeth. – Mantenha os olhos abertos.
– Você também, Sabidinha. Fiquei olhando enquanto ela subia a colina para se juntar à família. Ela deu um abraço meio sem jeito no pai e olhou para o vale atrás dela uma última vez. Tocou o pinheiro de Thalia e então se deixou levar por cima do cume e para dentro do mundo mortal. Pela primeira vez no acampamento, me senti verdadeiramente só. Olhei para o estreito de Long Island e me lembrei do meu pai dizendo: O mar não gosta de ser contido. Tomei minha decisão. Fiquei pensando: se Poseidon estivesse vendo, ele aprovaria a minha escolha?
– Estarei de volta no próximo verão – prometi a ele. – Sobreviverei até lá. Afinal, eu sou seu filho.
Pedi a Argos para me levar até o chalé 3, para eu arrumar as minhas coisas antes de ir para casa.
FIM e até a próxima semideuses